O sonho

O sonho

Alexandre Santos(*)

O velho Alberto estava morrendo. Ele passara a vida construindo amigos e amizades. Fora bom filho, magnífico irmão, excelente pai, tio maravilhoso, amigo formidável e, todos reconheciam nele, um marido fiel, amante carinhoso e companheiro leal da esposa Mariana até o dia em que a morte a levara, cinco anos antes. Agora, no limiar da grande inflexão da vida, cercado de amigos, ele jazia moribundo na UTI do Memorial da Ilha do Leite. O desenlace parecia inevitável, pois, segundo os médicos, um a um, os órgãos estavam deixando de funcionar. O plantonista informara ser um típico caso de falência múltipla para o qual não havia retorno. O médico parecia ter razão. Nos primeiros dias de internamento, a cada hora, o quadro piorava e o paciente ficava mais próximo do julgamento final.

Desde o começo da agonia, na ante-sala, falando em voz baixa como quem está no cinema ou no teatro, entre recordações e lamentos, amigos e familiares deploravam a iminente partida. “Com tanto bandido por aí, por que Deus resolveu levar logo o Seu Alberto, um homem que só fez o bem por toda a vida?”. O questionamento era recorrente. Como não poderia deixar de ser, liderada pela cunhada Anita – solteirona que, talvez para compensar a ausência da irmã Mariana, acompa-nhava a viuvez do cunhado e dava suporte de tia-mãe aos sobrinhos – se formou uma corrente de orações a rezar pelo improvável restabelecimento do doente querido. A união de mentes poderosas num cabo-de-guerra pela vida de Alberto parece ter surtido efeito, pois, contrariando as previsões médicas, surpreendendo a muitos, o quadro se estabilizou e a dança da morte não chegava ao fim. Coincidência ou não, o fato é que, depois que começara a rezaria, embora não houvesse qualquer melhoria, a situação parara de piorar. E, mesmo desenganado, o velho Alberto permanecia no plano terreno.

– Ele é um homem muito forte – explicava o médico sem dar qualquer crédito às orações ou esperança aos amigos do homem que teimava em permanecer vivo.

Animada com a estabilização, pouco se lixando para o ceticismo dos médicos, a corrente ganhou esperança, juntando mais e mais gente para adensar fluidos em favor da recuperação de Alberto. O otimismo prosseguiu até que, um dia, como se o próprio deus das batalhas, finalmente, tivesse escolhido um vencedor da guerra por aquela vida, os aparelhos indicaram o súbito agrava-mento do quadro geral do moribundo. Foi o início do caos. Inicialmente, embora abatida pelas notí-cias vindas da UTI, a corrente não reduziu o entusiasmo, pois contava com o reforço energético de Anita, que, surpreendentemente, até aquele momento ainda não havia chegado ao hospital para pu-xar o terço salvador. Acontece que tempo passava, Anita não chegava e a situação se agravava. Estava claro para todos que, desfalcada da voz e da fé da cunhada do doente, a corrente não funcio-nava. E a soma das más notícias sobre Alberto com ausência de Anita começou a pesar. O retorno da mulher passou a ser fundamental para a retomada da fé na possibilidade da cura. E, junto com a insegurança surgiram perguntas sobre as razões que teriam levado Anita a abandonar a corrente. Se ela não chegasse nos próximos minutos, a corrente se desfaria e não haveria mais qualquer possibi-lidade de restabelecimento para o velho. Assustado, Alberto Júnior, primogênito do moribundo, se dispôs a buscar a tia imediatamente.

Não foi difícil achar Anita. Ela estava em casa. Com semblante abatido, como se tivesse passado a noite em claro, caiu em prantos quando viu o sobrinho. Sem entender nada, Júnior abra-çou a tia e tentou consolá-la para estancar a tristeza, que parecia incontrolável. Ainda demorou bas-tante até Anita parar de chorar e substituir as lágrimas por soluços ritmados. Só, então, disse as primeiras palavras. Embora parecesse relutar em falar sobre o que a fazia tão deprimida, a mulher terminou por confessar o drama que a abatia. E, medindo as palavras como se as palavras pudessem ferir o sobrinho, contou que, naquela noite, sonhara com a irmã Mariana.

– Mariana estava radiante, Júnior.

E Anita contou tudo. No sonho, a irmã tinha dito que, cumprindo antigas promessas, os seus novos amigos celestiais tinham garantido que, apesar das forças que atrapalhavam a transição dos espíritos, de qualquer jeito, ainda naquele dia, sua solidão acabaria.

– Foi um aviso, Júnior – choramingou Anita.

– Então, tia, vamos voltar para o hospital. Meu pai precisa da sua ajuda.

Tomada por uma nova força, Anita aceitou o desafio e, correndo, se dirigiu ao hospital para reassumir a liderança da corrente. Mas, como um rastilho de pólvora, que espalha o fogo por onde passa, o sonho de Anita foi prontamente conhecido por todos.

– Alberto não passa de hoje – era o comentário à boca miúda pelos corredores do hospital.

Mas, as horas passavam e o velho permanecia firme. Como das vezes anteriores, a corrente de fé derrotara as forças da morte, fazendo, mais uma vez, estabilizar o quadro do velho Alberto. Até o rim, que não funcionava há dois dias, deu o ar da graça, surpreendendo o médico da família. O novo milagre foi comemorado por todo hospital. Mais um dia.

Pela madrugada, em casa, de repente, o sonho de Anita foi preenchido pela luz mais lumi-nosa já vista por um ser humano. Ela tentou respirar, mas não conseguiu e, placidamente, seguiu a luz. Finalmente, Mariana recebeu a companhia que esperava.

Enquanto isto, na UTI do hospital Memorial da Ilha do Leite, um milagre acontecia. Um a um, os órgãos de Alberto voltaram a funcionar.

O sonho

Alexandre Santos*

O velho Alberto estava morrendo. Ele passara a vida construindo amigos e amizades. Fora bom filho, magnífico irmão, excelente pai, tio maravilhoso, amigo formidável e, todos reconheciam nele, um marido fiel, amante carinhoso e companheiro leal da esposa Mariana até o dia em que a morte a levara, cinco anos antes. Agora, no limiar da grande inflexão da vida, cercado de amigos, ele jazia moribundo na UTI do Memorial da Ilha do Leite. O desenlace parecia inevitável, pois, segundo os médicos, um a um, os órgãos estavam deixando de funcionar. O plantonista informara ser um típico caso de falência múltipla para o qual não havia retorno. O médico parecia ter razão. Nos primeiros dias de internamento, a cada hora, o quadro piorava e o paciente ficava mais próximo do julgamento final.

Desde o começo da agonia, na antessala, falando em voz baixa como quem está no cinema ou no teatro, entre recordações e lamentos, amigos e familiares deploravam a iminente partida. “Com tanto bandido por aí, por que Deus resolveu levar logo o Seu Alberto, um homem que só fez o bem por toda a vida?”. O questionamento era recorrente. Como não poderia deixar de ser, liderada pela cunhada Anita – solteirona que, talvez para compensar a ausência da irmã Mariana, acompanhava a viuvez do cunhado e dava suporte de tia-mãe aos sobrinhos – se formou uma corrente de orações a rezar pelo improvável restabelecimento do doente querido. A união de mentes poderosas num cabo-de-guerra pela vida de Alberto parece ter surtido efeito, pois, contrariando as previsões médicas, surpreendendo a muitos, o quadro se estabilizou e a dança da morte não chegava ao fim. Coincidência ou não, o fato é que, depois que começara a rezaria, embora não houvesse qualquer melhoria, a situação parara de piorar. E, mesmo desenganado, o velho Alberto permanecia no plano terreno.

– Ele é um homem muito forte – explicava o médico sem dar qualquer crédito às orações ou esperança aos amigos do homem que teimava em permanecer vivo.

Animada com a estabilização, pouco se lixando para o ceticismo dos médicos, a corrente ganhou esperança, juntando mais e mais gente para adensar fluidos em favor da recuperação de Alberto. O otimismo prosseguiu até que, um dia, como se o próprio deus das batalhas, finalmente, tivesse escolhido um vencedor da guerra por aquela vida, os aparelhos indicaram o súbito agravamento do quadro geral do moribundo. Foi o início do caos. Inicialmente, embora abatida pelas notícias vindas da UTI, a corrente não reduziu o entusiasmo, pois contava com o reforço energético de Anita, que, surpreendentemente, até aquele momento ainda não havia chegado ao hospital para puxar o terço salvador. Acontece que tempo passava, Anita não chegava e a situação se agravava. Estava claro para todos que, desfalcada da voz e da fé da cunhada do doente, a corrente não funcionava. E a soma das más notícias sobre Alberto com ausência de Anita começou a pesar. O retorno da mulher passou a ser fundamental para a retomada da fé na possibilidade da cura. E, junto com a insegurança surgiram perguntas sobre as razões que teriam levado Anita a abandonar a corrente. Se ela não chegasse nos próximos minutos, a corrente se desfaria e não haveria mais qualquer possibilidade de restabelecimento para o velho. Assustado, Alberto Júnior, primogênito do moribundo, se dispôs a buscar a tia imediatamente.

Não foi difícil achar Anita. Ela estava em casa. Com semblante abatido, como se tivesse passado a noite em claro, caiu em prantos quando viu o sobrinho. Sem entender nada, Júnior abraçou a tia e tentou consolá-la para estancar a tristeza, que parecia incontrolável. Ainda demorou bastante até Anita parar de chorar e substituir as lágrimas por soluços ritmados. Só, então, disse as primeiras palavras. Embora parecesse relutar em falar sobre o que a fazia tão deprimida, a mulher terminou por confessar o drama que a abatia. E, medindo as palavras como se as palavras pudessem ferir o sobrinho, contou que, naquela noite, sonhara com a irmã Mariana.

– Mariana estava radiante, Júnior.

E Anita contou tudo. No sonho, a irmã tinha dito que, cumprindo antigas promessas, os seus novos amigos celestiais tinham garantido que, apesar das forças que atrapalhavam a transição dos espíritos, de qualquer jeito, ainda naquele dia, sua solidão acabaria.

– Foi um aviso, Júnior – choramingou Anita.

– Então, tia, vamos voltar para o hospital. Meu pai precisa da sua ajuda.

Tomada por uma nova força, Anita aceitou o desafio e, correndo, se dirigiu ao hospital para reassumir a liderança da corrente. Mas, como um rastilho de pólvora, que espalha o fogo por onde passa, o sonho de Anita foi prontamente conhecido por todos.

– Alberto não passa de hoje – era o comentário à boca miúda pelos corredores do hospital.

Mas, as horas passavam e o velho permanecia firme. Como das vezes anteriores, a corrente de fé derrotara as forças da morte, fazendo, mais uma vez, estabilizar o quadro do velho Alberto. Até o rim, que não funcionava há dois dias, deu o ar da graça, surpreendendo o médico da família. O novo milagre foi comemorado por todo hospital. Mais um dia.

Pela madrugada, em casa, de repente, o sonho de Anita foi preenchido pela luz mais luminosa já vista por um ser humano. Ela tentou respirar, mas não conseguiu e, placidamente, seguiu a luz. Finalmente, Mariana recebeu a companhia que esperava.

Enquanto isto, na UTI do hospital Memorial da Ilha do Leite, um milagre acontecia. Um a um, os órgãos de Alberto voltaram a funcionar.

(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural