Angélica
Angélica
Alexandre Santos (*)
A moça era linda.
César a viu pela primeira vez, em 27 de março de 2000, no saguão do Aeroporto dos Guararapes, no Recife. Estava tão apressado que não pode sequer, se dar ao luxo de olhar para ela pela segunda vez. Se não estivesse tão premido pelo funil da ampulheta, talvez ficasse por ali, na paquera. Ele merecia. Afinal de contas, nos últimos meses, talvez por conta da praga rogada pela socialite Trimagasi que ele rejeitara por 'absoluta incompatibilidade cultural' após meia hora de conversa vazia, tinha enfrentado muita coisa ruim, desde unha encravada até dor de dente, passando por topadas, crises apendicite, faringite, labirintite e toda sorte de azares. De qualquer forma, sem desafiar o mal-estar-dos-atrasados ou interromper a corrida desengonçada que fazia rumo ao guichê da LATAM, girou a cabeça, mas, como costuma acontecer nos vislumbres de aeroporto, a moça havia desaparecido e, provavelmente, para sua tristeza, nunca mais tornaria a vê-la. César suspirou, mas, o quê fazer? Era da vida.
Consciente do stress que embalava a disparada ao balcão da companhia, César ainda imaginou ter visto a moça numa lojinha mais adiante. Não podia ser. Era, sem dúvida, uma armadilha da mente, pois não tinha havido tempo para ela ter se deslocado até lá. Se (por alguma razão maluca) ela tivesse corrido para ultrapassá-lo, estaria suada, ofegante, colocando os bofes pela boca e, não como estava, placidamente, experimentando chapéus e óculos, como se nada tivesse acontecido. Só podia ser miragem. Realidade ou não, era inegável que aquela moça tinha despertado sua atenção e, à despeito da fisgada na nuca que ia e vinha, César não parou de pensar nela naqueles minutos. A imaginação voltou a trair César mais tarde, quando, finalmente, depois de longa espera na fila, se apresentou para o checkin e mais uma vez pensou ter visto a moça num guichê mais adiante.
Por maior que fosse a vontade de conhecer a moça, ele não tinha como fazer qualquer coisa naquele instante. Com efeito, por conta das prioridades que estabelecera para si próprio e policiadas por uma insistente fisgada na nuca, o Dom Juan que eventualmente podia aflorar e assumir o comando do seu comportamento foi reprimido e seria mantido assim, pelo menos até que fossem confirmados os embarques dos quais dependia para completar a viagem. Aliás, além de o relógio mostrar seu quase atraso para o embarque, a dorzinha-da-responsabilidade não deixava César esquecer o cronograma apertado das conexões que tinha pela frente para chegar a tempo em Salzburgo, onde, no dia seguinte, faria palestra no Congresso Mundial de Engenheiros Escritores, no centro de convenções do Sheraton Grand Salzburg. Depois das complicadas negociações que fizera para encaixar sua palestra no primeiro dia da programação e, assim, ganhar a chance de esquiar nas pistas de Kitzsteinhorn, a 80 km ao sudoeste de Salzburgo, não iria arriscar a perda de uma conexão.
O voo até Guarulhos foi, de certo modo, tranquilo. Tudo transcorreu como previsto e o avião aterrissou na hora programada. Daquele momento até a decolagem rumo a Europa havia um interregno de quase duas horas. Tempo suficiente para enfrentar a longa fila, fazer novo checkin, passar pelos procedimentos de segurança e chegar à sala de espera do portão de embarque. Mesmo assim, estava tenso, conforme indicava a dorzinha na nuca. Dentro do quadro de tensão que marca todas as viagens, as coisas aconteciam sem novidades. De repente, o pequeno sobressalto. Quando se dirigia ao balcão da AirFrance, a surpresa: numa loja do saguão, lá estava ela. A mesma moça que, por diversas vezes vira no Recife. Parecia estar mais bonita. Mas, não podia ser ela (porque ela estava no Recife) e, ao mesmo tempo, não podia deixar de ser [ela] (porque não podia existir outra pessoa igual a ela), César ficou na dúvida. De tão surpreso e animado, César ainda pensou adiar o que fazia e ir até ela, mas a fisgada na nuca voltou como aviso de que havia um horário a cumprir. Fazer o quê? E, agora com a certeza de que nunca mais a veria, [ele] respirou fundo, espichou um olhar e, tomado por uma certa melancolia, seguiu em frente. Como teria sido se aqueles encontros tivessem ocorrido em circunstância diferente, César ainda pensou.
A viagem transatlântica foi desconfortável como qualquer viagem longa e demorada, mas, mesmo perturbado pela lembrança (e pela estranha sensação surgida desde que vira a moça no Recife), César conseguiu dormir e só despertou com o convite para o desjejum, já em céus continentais europeus. Em instantes, César estaria em Amsterdã, penúltima escala antes de Salzburgo. Agora, passada a maior parte da viagem, as tensões cruciais seriam a entrevista com a imigração holandesa e a última conexão.
O ar europeu deve ter afetado o juízo de César, pois, na quilométrica fila da aduana do Aeroporto Schiphol, acolhendo talvez um desejo íntimo seu, voltou a ver a moça. O retorno dela, mesmo que fosse ilusório, o deixou alegre. A cada aparição ela parecia mais bonita. Desta vez não podia ser imaginação. De qualquer forma, desconfiado de que podia estar vivendo o mesmo sonho das outras vezes, César esfregou os olhos e, para sua desilusão, como nos sonhos anteriores, desfazendo o encanto, a moça desapareceu. Já habituado àquelas idas e vindas da alegria, César respirou fundo e, sem perder a esperança, seguiu em frente.
Embora seu olhar alerta, como se procurasse alguém, tivesse chamado atenção do oficial de imigração, não houve problema na alfândega e a conexão com o voo seguinte ocorreu como planejado.
Novo embarque, novos cochilos sem sonhos, novo serviço de bordo e hora e meia mais tarde, César estava no Aeroporto Wolfgang Amadeus Mozart, em Salzburgo. Com a esperança de voltar a ver a aparição, como nos outros aeroportos, César ingressou na área de desembarque esquadrinhando a pequena multidão. Nada. Na área de restituição de bagagens, sempre esperançoso, ao invés de olhar a esteira rolante em busca da mala, procurou pela moça. Desta vez, teve sorte. Aconteceu o esperado. Aparentemente aguardando bagagens vindas de Berlim, sem causar qualquer surpresa a ele, lá estava ela. Pela primeira vez, os olhares se cruzaram. Desdenhando a dor na nuca que, de repente, voltara mais forte, Cesar sorriu o sorriso mais alegre que pode iluminar.
César já estava pronto para o súbito sumiço de sempre, mas, desta vez, ela não desapareceu. Pelo contrário. Caminhou em sua direção e, como se fosse a coisa mais normal do mundo, estendeu-lhe a mão.
- Como vai, César? Meu nome é Angélica. Se Maomé não vai a montanha, a montanha vai a Maomé - ela sorriu e, como se o conhecesse por toda a vida, falou das coisas que César queria ouvir.
Foi amor a primeira vista. Embevecido, sem sucesso, César ainda tentou descobrir como, do nada, aparecendo e desaparecendo por todos os lugares, ela chegara a Salzburg.
- Toda mulher tem seus segredos - piscou ela - E falou e falou e falou, hipnotizando-o por completo.
Pouco tempo depois de instalados no hotel Grand Sheraton, na Auerspergstraße, no charmoso café do lobby superior, Angélica falou que tinha planos para o dia seguinte.
- Amanhã, não, Angélica - César falou de um dos sonhos que acalentava desde jovem - Depois da minha palestra no final da manhã, eu e alguns amigos vamos para Kitzsteinhorn, uma estação de esqui a 80 km ao sudoeste de Salzburgo. Vamos aproveitar esta viagem para aprender a esquiar. O curso já está contratado e pago. Você que ir conosco?
- Amanhã, não, César. Amanhã nós vamos ficar aqui, em Salzburg. Foi para isto que segui você desde o Recife - Angélica disse com o seu ar misterioso, desmontando os planos dele - Depois de amanhã, se você quiser, nós podemos ir a Kitzsteinhorn ou qualquer outro lugar.
- E o quê eu digo para o meus amigos?
- Diga que, amanhã, seu anjo quer você aqui, em Salzburg - Angélica fez a carinha enigmática que o apaixonara.
- Se é assim, está certo - concordou César. Para quem esperou tanto tempo, não seria um dia a mais ou a menos que iria alterar o prazer de esquiar, pensou ele.
Naquela noite, usando as agradáveis lembranças de Angélica para sufocar a dorzinha que, mesmo passada a tensão da viagem, teimava em queimar-lhe a nuca, César agitou-se com sonhos confusos de aeroportos e pistas de Kitzsteinhorn.
O dia seguinte trouxe novidades marcantes e inesquecíveis.
Logo cedo, após o café-da-manhã com Angélica (que estava mais linda ainda), César se integrou ao Congresso e, sem largar a mão de Angélica (e sem ser largado pela mão dela), participou da sessão solene de abertura. Na sequência, após o intervalo, conforme a programação, vendo Angélica na primeira fila, César proferiu a sua palestra e pronto! Pelos seus planos pessoais, estaria livre pelo resto do dia. Se não fosse pela alteração de última hora, César viajaria com cinco colegas para Kitzsteinhorn, onde ficaria por dois dias nas pistas de esqui. Mas, houve a mudança e, conforme prometera a Angélica, ele só viajaria no dia seguinte. Um atraso do qual, pelo quê conhecia de Angélica, jamais se arrependeria.
Após se despedir do pessoal que, alegre e ruidosamente, seguiu para a estação de esqui, sem achar Angélica em qualquer lugar do hotel Sheraton Grand, César foi para o auditório principal do centro de convenções onde, enquanto esperava Angélica, prestigiou algumas palestras. Ele estava ansioso, pois, seguramente, Angélica deveria estar preparando alguma surpresa. Ele esperaria o tempo necessário.
César não teve como esperar por Angélica como queria, pois, durante o coffee-break, no meio da tarde, chegou a notícia do desastre. Todas as redes de televisão interromperam as programações para informar sobre a avalanche que destruíra a estação de esqui de Kitzsteinhorn, matando 12 turistas, incluindo seus cinco colegas. Aqueles com os quais deveria estar naquelas escapadela do Congresso. Foi um grande choque. Ondas de energia percorreram seu corpo, espalhando calafrios há muito esquecidos. Só, então, sem conseguir falar direito, César atinou que, se não fosse pela insistência de Angélica, teria viajado com os colegas e, agora, também estaria morto.
Impactado pela notícia, o Congresso foi suspenso e, por instantes, a balbúrdia se instalou no hotel. Tão logo recobrou a tranquilidade, César procurou por Angélica. Ela não estava no apartamento, nem em qualquer outro lugar do hotel. Não havia sequer registro da sua passagem pelo Sheraton Grand Salzburg. Um grande mistério! Embora estivesse habituado às aparições e desaparições de Angélica, César nunca compreendeu seu novo sumiço. Ela desapareceu sem deixar qualquer registro ou pistas de para onde pudesse ir ou estar.
Vinte anos mais tarde, no dia 27 de janeiro de 2020, quando se preparava para viajar às Ilhas Cayman, para mais um Congresso Mundial de Engenheiros Escritores, César voltou a ver Angélica. Desta vez, no saguão do Aeroporto dos Guararapes. Ela continuava tão bela como estava na última vez que a vira em Salzburg. Não mudara nada. Era como se o tempo não tivesse passado para ela.
- Não faça esta viagem, César - ela falou naturalmente, sem qualquer preâmbulo, como se jamais tivesse perdido contato com ele.
- Por que você desapareceu em Salzburg, Angélica? - como se não tivesse ouvido o apelo, César parecia ter retomado uma conversa interrompida vinte anos atrás.
- Eu precisei viajar às pressas para salvar um amigo que corria perigo de vida - ela respondeu, beijando-lhe a face suavemente - Não faça esta viagem.
Como das vezes anteriores, de forma tão inesperada como aparecera, Angélica desapareceu.
Lembrado daquilo que aconteceu em Salzburg, César sabia das vantagens de atender aos pedidos de Angélica e, surpreendendo as pessoas que estavam com ele, desistiu da viagem quando já estava no salão de embarque. E, então, do nada, como um louco e sem qualquer argumento concreto a não ser um vago 'pedido de um anjo que me quer aqui', sem sucesso, César apelou para os amigos desistirem da viagem.
No dia seguinte, no começo da tarde, em edição extraordinária, todas as redes de comunicação informaram sobre o devastador sismo ocorrido no Caribe. Um terremoto de magnitude 7,7 na escala Richter atingiu o lado norte da calha de Cayman, norte da Jamaica e oeste da ponta sul de Cuba, com o epicentro a 83 milhas ao norte de Montego Bay, provocando grande destruição e muitas mortes.
Ao fechar os olhos para se perguntar como aquilo era possível, César tornou a ver Angélica.
Bonita como sempre, ela sorria e soprava um beijo em sua direção.
(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural