A missão de JuanCarlos
A missão de JuanCarlos
Alexandre Santos
JuanCarlos era um mágico em permanente ascensão. Vindo da banda ocidental do México de onde escapara rumo ao El Dourado noviarquino apenas com as habilidades dadas pelo pai, depois de uma curta temporada pelas estações do metrô - onde em troca de ninharias, exibia proezas como entortar colheres com o olhar, tirar moedas das orelhas dos transeuntes, puxar coelhos de caixas vazias, fazer aparecer e desaparecer pombas, achar cédulas escondidas ou descobrir a preferência alheia por números e cartas de baralho -, fora descoberto por Paul Tombins, um agente do mundo da Broadway, que, depois de convencê-lo a usar seu talento para desenvolver um espetáculo ousado, o levara a fazer apresentações em teatros de renome como o Minskoff e o Majestic, em Times Square.
Tendo sido professor assistente na cadeira de mágica na Universidade de Nova York, as indicações de Paul Tombins eram muito apreciadas pelos produtores e diretores de espetáculos circenses e de ilusionismo. O velho professor construíra a fama pelo rigor como escolhia os protegidos e por não admitir o uso da mágica para zombarias ou abuso da inocência de crentes. Há muitos anos, ganhara celebridade mundial ao denunciar os 'charlatães da sétima avenida', como ficaram conhecidos os mágicos que, se fazendo passar por magos orientais, vendiam promessas de saúde, prosperidade e felicidade a peso de ouro. O agente ficara impressionado com a arte de JuanCarlos porque, a seus olhos treinados na percepção de truques e manobras ilusionistas, a mágica dele, simplesmente, não era 'mágica' e, sim, para-realidade. Paul Tombins chegara a esta conclusão após passar horas a fio em tocaia artística no labirinto subterrâneo da Grand Central Station, na 42 st., escondido por entre as pequenas multidões que se aglomeravam o entorno de jovem mágico, para descobrir algum deslize ou falha e, num misto de surpresa e alegria, não descobrira nenhuma. Depois daquela tarde, Paul Tombins não teve dúvidas: JuanCarlos não era um simples ilusionista, diferente apenas porque, ao invés do estilo Mandrake do fraque e da cartola, usava os cabelos compridos e camisas coloridas. Embora ganhasse a vida entretendo plateias com aquilo que, a primeira vista, poderia parecer aos profissionais do ramo um variado repertório de ilusões para confundir os espectadores e dar a impressão de fazer acontecer o impossível, ele tinha, de fato, poderes sobrenaturais, sendo, verdadeiramente, um mago capaz de provocar mudanças na realidade a partir da própria vontade.
Estimulado pelo agente, pouco a pouco, JuanCarlos abandonou a mágica menor e, dando asas à imaginação, decidiu transformar em arte dos seus poderes especiais (que, na realidade, eram especialíssimos) e inveredou pelas grandes searas do show business, montando, sucessivamente, os campeões de bilheteria 'Spellbound' e 'World of Magic', nos quais, em ritmo alucinante, animava plateias boquiabertas com quadros de levitação, telecinesia, aparecimentos e desaparecimentos, transformações, invisibilidade, teletransporte, travessias, fugas, premonição e tudo o mais.
Ao ver verdadeiros milagres, como nos espetáculos 'Water Torture and Escape' - quando caminhou sobre o espelho d'água da piscina depois de ter escapado do cofre submerso aonde fora trancado, amarrado, acorrentado e vestido numa camisa-de-força - e 'The Magic Show' - quando, depois de comandar a elevação de móveis e animais, fazendo-os boiar no ar, os fez desaparecer de um lugar para fazê-los aparecer em outro -, as pessoas ficavam extasiadas com a mágica de JuanCarlos. Sabendo, no entanto, tratar-se de mágica e, portanto, fruto de ilusionismo, incrédulas, elas se perguntavam 'como isto é possível'? Até Paul Tombins, que conhecia a força mental de JuanCarlos, não acreditava nas coisas que via.
No embalo do sucesso de público, com shows cobiçados por todos os 43 teatros do exigente circuito da Broadway, ao tempo que recebia convites para proferir palestras e fazer espetáculos por todo o país, era admitido na Sociedade dos Mágicos Americanos e recebia prêmios, inclusive a cobiçada estatueta de 'mágico do ano' concedida pela Academia de Artes Mágicas de Hollywood, JuanCarlos conquistava a crítica especializada, que passou a compará-lo a ícones da mágica mundial como Jean Eugène Robert-Houdin, Harry Houdini, Douglas James Henning, Mararishi e David Copperfield. Para muitos, se fosse vivo, o próprio Merlin lhe renderia homenagens. Tanto sucesso, claro, despertou invejas e ciúmes. Jeremy Weiss, por exemplo, um mágico bem sucedido no circuito circense periférico, que se dizia neto e herdeiro artístico de Harry Houdini, obteve seus cinco minutos de fama ao denunciá-lo por plágio e fraude em entrevista no programa '60 minutes', na CBS News. Nada disso, no entanto, perturbava a carreira de JuanCarlos, que, destinado aos píncaros da glória artística, passava ao largo das intrigas e estreitava a relação e a comunicação com as forças sobrenaturais, estudando mistérios da natureza e pesquisando fundamentos da alquimia, gnose e astrologia.
JuanCarlos não contava, no entanto, com os caprichos do acaso, que - pouco se lixando para a opinião dos oráculos e para os poderes especiais que ele pudesse ter - um dia, os colocou à prova em claro desafio aos livros de Morus.
De fato, ao encerrar a vitoriosa temporada no teatro Gershwin com o espetáculo no qual, apenas com a força do olhar, fazia levitar uma camionete arrancando a habitual calorosa salva de palmas, faminto e exausto pelo grande esforço mental realizado (como sempre ocorria neste tipo de número) e feliz com o sucesso alcançado, por alguma coisa acima da sua compreensão ou preocupação, JuanCarlos decidira não participar da tradicional comemoração. Naquele dia, uma sensação estranha o fez contrariar a rotina.
Naquela noite, mesmo sem outros planos, Juan Carlos estava com outros planos.
Acolhendo a voz interior que recomendava solidão, ao invés de comer um sanduiche e, ainda no camarim, dormir profundamente por uns dez minutos (o suficiente para recuperá-lo plenamente) para acompanhar os companheiros da companhia ao west side e agitar nas pistas de dança da badalada Pink Elephant, JuanCarlos foi direto para o Locanda Verde, em Greenwich, onde pretendia fazer uma refeição leve e, sem qualquer alvoroço, voltar para casa.
Não foi isso o que ocorreu.
JuanCarlos ainda aguardava o Pappardelle recomendado pelo chef Andrew Carmellini, bebericando o fino Valpolicella Superiore e petiscando a delicada Burrata sem qualquer pressa, quando sentiu o chamado. Uma leve fisgada na nuca indicava que o momento pelo qual aguardava desde sempre tinha chegado.
Foi exatamente o que aconteceu e foi muito rápido.
De repente, expulso violentamente da cozinha pela explosão de uma caldeira, depois de se espalhar pelo chão do restaurante, incendiando cortinas, toalhas e móveis, o fogo começou a tomar o prédio, subindo as escadarias e escalando as paredes rumo aos andares superiores. Na ocasião, embora enfraquecido pelo esforço despendido no show de há pouco e sem receber qualquer outro aviso, a não ser a gritaria dos cozinheiros, JuanCarlos foi capaz de criar um túnel no meio do fogo através do qual as pessoas do restaurante puderam escapar daquele inferno e chegar incólumes à rua. Mas, a missão maior estava por vir.
Tão logo viu as pessoas em segurança, rechaçando apelos para não bancar o herói e deixar o combate às chamas para os bombeiros já a caminho, mesmo enfraquecido, JuanCarlos retornou ao prédio, que, àquela altura, era um verdadeiro fogareiro. Poucas pessoas compreenderam o porquê de ele, um artista de sucesso, em plena ascensão, ter tomado aquela atitude.
Acontece que, por toda vida, JuanCarlos esteve consciente de que, sem nada ter feito para tê-los ou, mesmo, merecê-los, recebera poderes especiais com algum propósito maior e, não para usar a seu bel prazer, como vinha fazendo até então. Assim, intimamente, ele sabia das suas responsabilidades com o próximo, com os seus, com a humanidade, com o planeta e, mesmo, com o universo e, sabia, também, que, algum dia, seria chamado para usar seus poderes em propósito maior do que o show business.
Este dia chegara.
Tomado por uma nova consciência, desdenhando ameaças desconhecidas e disposto a enfrentar riscos e azares, esquecido das próprias limitações, inclusive da debilidade energética ainda não superada, JuanCarlos decidiu não esperar pela chegada dos bombeiros despachados desde o MetroTech Center, no centro do Brooklyn, e invadiu o inferno para cumprir a missão para a qual, sem saber, vinha sendo preparado.
E deu no que deu.
Em esforço sobre-humano, JuanCarlos conseguiu reviver poderes esmaecidos pelos esforços mentais já realizados naquela noite e, contrariando a ciência conhecida e a lógica, atravessou paredes, extinguiu labaredas, criou passagens, quebrou vidraças, soprou ventanias, ascendeu a pisos superiores e desceu aos porões mais profundos, para desfazer maldições e afugentar espectros e seres desconhecidos, salvando a todos que via pela frente. Como em todos os shows realizados na vida, neste, JuanCarlos também teve desempenho irretocável.
Quando as sirenes anunciaram a chegada dos bombeiros, não havia mais perigo para as pessoas. Na realidade, antes que os homens do FDNY pudessem vencer a cortina de fogo e fumaça para entrar no prédio, em episódio depois classificado como milagroso pela prefeitura de Nova York, todas as pessoas - que, no entender de muitos especialistas, estariam fadadas a morte pelo fogo - descansavam nas calçadas da TriBeCa, sob os cuidados dos paramédicos.
Despois deste dia, JuanCarlos jamais foi visto.
A despeito de todas as buscas, seu corpo nunca foi encontrado.
Desde então, referido pelos bombeiros como 'o herói de TriBeCa', JuanCarlos é venerado como santo por todos aqueles que acompanharam seu empenho para salvar as pessoas do inferno que, naquele dia, se instalou em Nova York.
(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural