A história de Madalena
A história de Madalena
Alexandre Santos*
Madalena estava cansada.
Olhava a enorme fila à sua frente e suspirava desolada. Quando teria a felicidade de voltar para casa? Queria tomar um banho refrescante, jantar e, quem sabe, pegar um cinema com as primas. Automaticamente recebia os clientes com um sorriso mecânico e, cumprindo à risca todos os protocolos introduzidos pelos novos controladores do banco, continuava a rotina de atendimento, recebendo pagamentos e depósitos, descontando cheques e fazendo tudo o mais o que um operador de caixa precisa fazer no horário do expediente. Tudo seguia como nos outros dias até que, de repente, sem qualquer aviso ou preâmbulo, ao invés de um “bom dia” ou um “boa tarde” seguido de algum pedido, o cliente tirou os óculos escuros, e, olhando-a profundamente com olhos estranhamente cintilantes, disse simplesmente:
– Mire os meus olhos.
O trabalho continuou como se nada tivesse acontecido, mas, no final do expediente, veio a bomba.
A prestação de contas constatou a ausência de R$ 10 mil no caixa. Como aquilo poderia ter ocorrido? Ela fizera tudo conforme o protocolo estabelecido pela matriz em Genebra, seguindo o check list e conferindo valores e cédulas mais de uma vez. Assustada, esqueceu o cansaço e rezou para que o tempo passasse rápido e o tormento acabasse logo. A situação, no entanto, era mais complicada do que pensava Madalena, que, ingenuamente, sabendo ser inocente e haver um seguro para perdas, imaginava como prejuízo maior ter o nome inscrito no índex dos ‘automaticamente suspeitos’.
Não aconteceu assim.
Depois de ter, pela milésima vez, repetido com franqueza não ter percebido, em momento algum, qualquer coisa estranha, foi confrontada com a própria imagem mostrada no laptop que, até então, tivera a tela virada na direção do chefe da segurança da agência, que, até então calado, acompanhava o interrogatório.
– Isto lembra alguma coisa à senhora? – perguntou o homem, falando pela primeira vez.
A imagem capturada pelas câmeras de segurança mostrava com clareza o instante em que, com o sorriso exigido pelo protocolo, ela entregava vários maços de notas a um homem desconhecido. Confusa, Madalena explodiu em choro. Surpresa e sabendo-se inocente, ainda tentou ponderar, mas, as evidências eram claras e não havia muito o que falar. De nada valia o seu pranto sincero.
A moça desfaleceu sentindo a terra desaparecer sob os pés e só despertou horas mais tarde. Apavorada com o repentino banho da luz vinda de holofotes surgidos não sabia de onde, se viu algemada e, juntamente com as provas do crime (que sabia não ter cometido), entregue à polícia.
Disposta a usar o caso como exemplo aos golpistas, a diretoria recém nomeada mobilizou imediatamente a assessoria de comunicação e, com os telefonemas certos às pessoas certas, ainda naquele dia, a prisão de Madalena foi notícia nos telejornais das principais redes de televisão do Brasil. De uma hora para outra, do anonimato nas ruas de Casa Amarela, na zona norte do Recife, a moça ganhou notoriedade nacional. Por todo o País, após exibir imagens das câmeras de segurança, as telas mostraram a caixa cabisbaixa, algemada e sufocada por dezenas de microfones, entrando num camburão da polícia. Através da mídia, parentes, amigos, vizinhos e colegas conheceram uma Madalena que sabiam não existir: desonesta e cínica ao ponto de, mesmo confrontada com provas irrefutáveis, negar o crime que lhe era atribuído.
Mas, como sabiam todos que a conheciam verdadeiramente, Madalena era inocente. Ela era de boa índole e desde pequena, cumprindo um catecismo muito particular, não fazia coisas capazes de envergonhar a ela ou aos seus. Fruto da autodeterminação e do livre arbítrio que tanto prezava, com o passar do tempo e com a parceria de velhos companheiros de arroubos juvenis e loucuras da vida, desenvolvera um decálogo simples e que, em seu entender, abria caminho para a virtude, para o belo, para o bom e para o justo. Há muito tempo, o pequeno grupo de João Cláudio - agora disperso pelo mundo, cumprindo sem saber uma sina escrita a fogo em tábuas desconhecidas - professava os mandamentos de não matar, não roubar, não cobiçar as coisas dos outros, não fazer nem rogar malvadezas, não desejar o mal aos bons, respeitar a inocência e a pureza, praticar a lealdade, contribuir para o bem estar de todos, buscar a justiça das coisas, combater a arrogância e o egoísmo e, finalmente, respeitar a natureza.
Já passara muito tempo desde a época em que fora musa e conselheira do líder revolucionário, mas, a exemplo dos velhos companheiros, sempre em paz consigo mesma, Madalena permanecia sincera e fiel àqueles mandamentos. Esta, talvez, fosse a razão de ela dormir tão bem e com tanta facilidade.
Naquele momento, no entanto, sentada há duas horas sob a forte luz de um potente refletor, impedida de dormir, Madalena estava aguardando a continuação de um humilhante interrogatório na delegacia de Casa Amarela, sob a suspeição de ter roubado um banco. Isolada do mundo, sem saber que era alvo do sistema de monitoração, tendo a imagem permanentemente transmitida para a sala do delegado designado para o caso, Madalena, com uma ponta de ironia, lembrou dos velhos tempos de militância política, quando, inspirada no radicalismo de João Cláudio, muitas vezes citara Lênin, perguntando que "o que é roubar um banco perto de abrir um banco?". O lampejo pelo passado arrancou-lhe um breve sorriso: "se agora estou frita, imagine se esses caras soubessem a coisas que eu já disse sobre bancos e banqueiros?", pensou Madalena, fechando imediatamente o semblante para recompor a compostura. O ar de riso, no entanto, foi registrado pelas câmeras, plantando interrogações nos agentes e detetives.
Controlando a revolta que anima os injustiçados e consciente de que enfrentava coisas acima da sua compreensão, sabendo-se inocente, Madalena estava certa de que, mais cedo ou mais tarde, a verdade viria à tona e ela não seria condenada pela justiça dos homens. Mesmo assim, embora conservasse a confiança na prevalência do bem (um dos conceitos mais apreciados pelo seu antigo grupo), Madalena conhecia a consistência dos indícios reunidos contra ela e sabia que a absolvição dependeria de um pequeno milagre.
E, dependendo deste 'pequeno milagre', Madalena colocou-se nas mãos de Deus.
(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural