Coisas da vida
Coisas da vida
Alexandre Santos *
– Cara – gritou o rapaz ao primeiro movimento do banqueiro, como se já soubesse a trajetória da moeda.
Não deu outra.
A moeda fez uma cambalhota esquisita e, subvertendo o esquema para o qual fora projetada, caiu com a coroa emborcada. Com um sorriso malicioso, a loura pegou-lhe as mãos e, sem esperar resposta, o puxou no rumo dos quartos do cabaré.
– Pronto! Sou toda sua.
Aquela cartada fora o desfecho de uma maratona de sortes inexplicáveis que começara duas horas antes, quando, desiludido com a vida e resolvido a se despedir do País o mais rápido possível, André Saraiva descobrira que saíra muito cedo para o aeroporto e, contrariando uma vida de recatos, resolvera fazer hora no Joanna’s – um bordel de luxo famoso pelas mulheres caras e pela jogatina que oferecia a clientes endinheirados. A chegada de André ao lupanar foi brindada por olhares experientes, que – talvez pelo ar ingênuo, talvez pela pequena mala de viagem, talvez pelo jeito desengonçado – logo o classificaram como “um mané”. O sinal quase imperceptível da gerente atiçou a loura Jaqueline – a primeira-cortesã, a mulher mais requisitada da casa –, que imediatamente avançou sobre a carne nova e, em dois tempos a levou aonde quis. Sem encontrar qualquer resistência, ao invés do salão onde pairavam as mariposas de sempre, a jovem puta-velha levou André ao cômodo secreto onde funcionava o cassino – uma arapuca especializada em depenar clientes desavisados. Era ali onde (a lei das probabilidades garantia), em meio a um cafuné e outro, o cliente perdia tudo que a coragem permitisse e, depois, sem maiores escrúpulos ou remorsos, era descartado e despachado para a vala dos desprovidos. Alguma coisa, no entanto, tinha acontecido com a roda da fortuna e, ao invés de perder ‘até as calças’ como previsto, o tal rapaz ganhou e ganhou muito, por horas seguidas. O ‘mané’ parecia saber com antecedência o movimento dos dados que rodopiavam o veludo verde ou o plano de vôo da bola que saltitava o carrossel da roleta. Muito dinheiro percorreu o sentido inverso ao esperado e, ao invés de sair, entrou no bolso de André. Avisada do descompasso que perturbava a ordem natural do cassino, a cafetina-chefe avisou ao banqueiro. A correria foi grande. Depois de confirmar pessoalmente a integridade do sistema cuidadosamente construído para fazer pender sortes e azares, o homem sacudiu a cabeça como se estivesse diante de um grande enigma. Alguma coisa estava errada. Contrariando a lógica, o rapaz não parava de ganhar. Se nada fosse feito, a banca quebraria antes do final da noite. Era hora de alguma providência. Munido das moedas especiais que o fizeram rico, o banqueiro dispensou o crupiê e assumiu o comando do jogo.
– Que tal um cara-ou-coroa, sortudo? O dobro ou nada – desafiou sem delongas.
Ainda estupefato com a onda de sorte, André olhou para o monte de dinheiro a sua frente e titubeou. Jaqueline, então, cumpriu a parte que imaginava lhe caber naquele momento e, sem vacilar, usou a perícia adquirida no dia-a-dia da vida movimentada que levava desde sempre. Passando vagarosamente entre o cliente e a mesa, deixou que o traseiro macio o roçasse provocante, massageando-o interminavelmente. A voz sussurrou diretamente no ouvido de André:
– Se ganhar mais esta, eu lhe darei qualquer coisa.
A moeda viciada não fez a sorte mudar de lado. André ganhou mais uma vez.
“Sou toda sua”, ainda pasmo com a pirueta feita pela moeda de estimação, o banqueiro ouviu a voz de Jaqueline e rezou a Deus para que o cliente não insistisse em ficar ali, pois, nesse caso, teria que expulsá-lo à força. O detalhe é que, tendo verificado tudo pessoalmente, inclusive os dados e as moedas viciadas, o banqueiro sabia que, se havia fraude no sistema, era a seu favor. Olhando incrédulo a moeda que o traíra, o banqueiro ergueu a visão e, com alívio, viu a mulher loura levar o cliente pela mão. Embora enfurecido, não teve como deixar de reconhecer que ali estava um homem de sorte.
O banqueiro não sabia, mas nem sempre as coisas tinham sido daquela forma.
Na realidade, até aquele momento, a vida de André tinha sido uma sucessão de azares. Azar na vida, azar nos negócios, azar no amor. Depois que perdera o emprego e, junto com ele, Soraya, a namorada interesseira que o trocara pelo chefe, desiludido e humilhado, André queria apenas fugir da realidade que o massacrava. Agastado com tudo e com todos, André não teve dúvidas: rapou todos os tostões da pequena poupança, comprometeu a indenização mixuruca que esperava receber e comprou a viagem para Paris. Um mês longe de tudo talvez o fizesse esquecer a mulher que infernizara sua vida. Foi este André que, sem sequer saber da hora, saíra de casa no início da tarde para apanhar um avião que só partiria no final da noite. Foi este André que, mesmo sabendo-se azarado, aceitara enfrentar um crupiê experimentado. Foi este André que, contrariando a lógica do sistema e a própria história de vida, quase quebrara o cassino do Joanna’s.
Embora parado para André – que, sem acreditar na repentina e inédita onda de sorte, se beliscava para confirmar estar acordado e se apalpava para confirmar os bolsos recém estufados por maços de dinheiro ganhos facilmente, seguia o rastro da loura suculenta como um zumbi malicioso antevendo os presentes que ganharia na alcova –, o mundo estava em pleno movimento. Bem à sua frente, caprichando no rebolado, caminhava Jaqueline, a primeira-cortesã do Joanna’s, imaginando as prendas que pediria ao homem a quem se prometera de graça e a gratificação-extra que cobraria ao patrão a quem salvara da bancarrota prometendo encantos que ele próprio conhecia. Bem distante, a mais de 10 km ao sul, cumprindo um ritual que se repetia a cada dois dias, um comandante francês era despertado pelo beijo ardente da namorada carioca e, quase 20 km ao norte, tendo como pano-de-fundo a verdade omitida pela jovem sonhadora a uma mãe zelosa, uma mala que já pertencera a André era arrumada às pressas.
Entretido com os prazeres que o aguardavam, André não fazia a menor ideia do que acontecia pelo planeta, mas, ao tempo que recebia os primeiros bafejos da sorte, ganhando as primeiras rodadas na roleta no cassino do Joanna’s, a deusa da fortuna também sorria para Soraya, a antiga namorada.
– Claro que quero, Miguel!...– gritou a moça ao telefone.
– Então corra para o aeroporto. Seu nome está na lista de espera. Nos veremos amanhã, meu amor.
Ela acabara de receber o convite para viajar ainda naquela noite à Europa onde se encontraria com o namorado no dia seguinte. Estava exultante. A viagem só não seria melhor porque não iriam sós. “Por uma questão de protocolo”, explicara Miguel, “minha esposa também vai”. Isso era o de menos, pois os encontros furtivos não eram propriamente uma novidade na vida deles. Desde que tinham começado seis meses atrás, exercitavam a arte da dissimulação se encontrando às escondidas pelos motéis e bares da vida, ocultando o affaire do namorado dela, da esposa dele, dos colegas de ambos e do resto do mundo. Como em casos parecidos, o segredo não resistiu muito tempo. Bastou uma desconfiança para a fofoca ganhar os corredores e, em questão de dias, ser conhecida por toda a companhia. André, o namorado traído, como sempre, foi o último a saber. Desiludido, porém resignado ao infortúnio, ao invés de promover escândalo ou cobrar satisfações, baixou a cabeça chifrada e simplesmente pediu demissão, removendo o último obstáculo para as traquinagens da moça, que, livre dos grilhões que a prendiam aos recatos da classe media, soltou-se e, pouco ligando para o falatório que se sabia alvo, assumiu a condição de ‘a outra’, esmerando as compreensões, atenções e carinhos que, sabia ela, Miguel não recebia em casa, pavimentando um caminho que, se Deus quisesse, poderia convertê-la em matriz.
Soraya desligou o telefone e, leve como um passarinho, correu para arrumar a mala. Pragmática, não contaria a verdade para a mãe, que, de formação tradicional, não aprovaria a viagem com o namorado, muito menos se soubesse o seu estado civil. Diria que viajaria a trabalho e pronto. Involuntariamente, em sua pressa, Soraya agiu como nos tempos que ainda não conhecia Miguel. Na mala que André lhe dera “para a viagem de lua de mel” arrumou as roupas leves e excitantes que uma recém casada deveria usar. Mala pronta, correu para o aeroporto e se apresentou no guichê da Air France. Como Miguel recomendara, era a primeira da lista de espera...
Enquanto Soraya corria contra o tempo para ser a primeira na lista de espera, na principal alcova do Joanna’s, André era engolido por Jaqueline, que, cumprindo o que prometera, atendia a todas as vontades do meninão, dando o melhor de si para justificar o presente que pediria pelos carinhos oferecidos de graça. Imerso no mundo de prazeres que a experiente cortesã lhe apresentava, André não estava nem aí para o relógio. Só depois da quarta visita ao paraíso, já sem forças, o moço olhou para o relógio.
– Puta que pariu! – gritou ele, pulando da cama – preciso ir para o aeroporto.
Quando, esbaforido, André chegou ao guichê era tarde.
– Lamento senhor. Fechamos o atendimento para este voo há mais de dez minutos. A lista de espera já foi chamada – disse o rapaz da companhia aérea, se prontificando reservar um lugar no próximo voo, no dia seguinte.
Não havia o que fazer, a não ser lamentar o azar e atender a proposta. André sentiu o dinheiro nos bolsos e resolveu voltar para o Joanna’s.
Recebido com alegria por Jaqueline – que, disposta a ter a ele e ao seu dinheiro só para si, desta vez passou ao largo do cassino, levando-o diretamente para o melhor apartamento do bordel –, André só soube do acidente muitas horas mais tarde, quando, exausto, momentaneamente fora das carnes da primeira-cortesã do Joanna’s, ligou a televisão e, com espanto crescente, verificou que todos os canais destacavam o desaparecimento do Airbus A330 que fazia o voo AF 447 da Air France para Paris – exatamente o que perdera horas antes. Calafrios sucessivos percorreram o corpo de André, assustando a mulher a seu lado.
A inexplicável onda de sorte o fizera escapar do mergulho que matara 228 pessoas no oceano Atlântico a meio caminho das costas brasileira e africana. André jamais saberia, mas, ao usar o chame pessoal para antecipar em dez minutos o atendimento aos retardatários no guichê da Air France e tomar lugar no voo, a antiga namorada Soraya salvara-lhe a vida, dando a sua em seu lugar.
Coisas da vida!
(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural