Milagre de São João

Milagre de São João

Alexandre Santos

Nascido e criado na Serra dos Cavalos, pequeno distrito de Caruaru, a metrópole do agreste de Pernambuco, José Carlos era diferente dos demais meninos, sendo simultaneamente forte, saudável, bem-humorado, esperto e gentil. Sem que ninguém tivesse ensinado, sabia fazer mágicas e não tinha medo de alma do outro mundo. Pouca gente sabia, mas, desde criança, antes, mesmo, de aprender a ler, ele fazia contas de cabeça e parecia entender as línguas estrangeiras faladas nos filmes. Desvendava charadas, abria cofres, entortava garfos e colheres com o olhar, curava dores, fazia adivinhações. Era um fenômeno. Ninguém conseguia explicar a empatia dele com os animais (com os quais parecia falar), a ponto de, mansamente, Trovão, o temido touro da fazenda Malhada de Pedra, deixar-se montar para conduzi-lo pela trilha do açude para subir a ladeira pelo brejo da Mata Atlântica em busca das bromélias e samambaias com as quais enfeitava a capela aos domingos antes de seguir para a Feira de Caruaru, no centro da cidade, onde retomava o roteiro que traçara para percorrer mensalmente cada uma das 5.000 barracas oferecendo ervas e unguentos feitos e bentos por ele próprio segundo uma mágica capaz de curar doenças do corpo e da alma, levantar moribundos, soltar a voz dos cantadores e, mesmo, despertar a veia poética de cordelistas e repentistas.

O tempo passou.

Ao invés de seguir para a sede do município ou para a capital do Estado, como seus irmãos, primos e alguns seus vizinhos, José Carlos se manteve na Serra dos Cavalos, cultivando ervas especiais e destilando unguentos milagrosos, ensimesmado em longos retiros, só deixando o distrito em raríssimas ocasiões, como, por exemplo, no dia que, atendendo ao pedido de Maria, sua mãe - que implorou ajuda para salvar a filha de uma comadre que, vítima de uma doença desconhecida, agonizava num leito do centro de Maurício de Nassau -, foi ao hospital Marcelo Bagetti, onde depois de uns minutos a sós com a protegida da mãe, completamente exausto e com o sorriso de sempre, contrariou a diagnósticos dos médicos com um simples "a moça vai sobreviver".

José Carlos ingressou na vida adulta casto como nascera, concentrado apenas nas coisas do espírito e do mundo de Deus. Coisas completamente fora do alcance dos parentes e vizinhos, que, empenhados na dura luta pela sobrevivência, embora fossem testemunhas oculares dos milagres por ele obrados por toda a vida, talvez pela intimidade que os permitia chamá-lo de Zeca ou Zequinha, não tinham José Carlos como santo ou milagreiro. Sem compreender aquele modo de pensar, também não compreendiam o porque da peregrinação cumprida por tanta gente importante (a julgar pelos carros em que viajavam, aqueles desconhecidos tinham de ser muito importantes, pensavam os vizinhos), que, vinda de longe, se embrenhava pelas estradas de terra da região em romaria só para vê-lo.

Naquela véspera de São João, contrariando a expectativa de todos, que o sabiam avesso aos folguedos - incluindo a mãe Maria, a tia Isabel, os irmãos, os primos e todos que o conheciam - repentinamente José Carlos disse que os acompanharia às festas na cidade. Havia uma razão para a surpresa geral, pois, desde sempre, fora os quarenta dias que passou desaparecido, embrenhado no mato, ao invés de fazer como os demais rapazes da sua idade (que, embalados pelas sanfonas, triângulos e zabumbas, empanturrados por todas as pamonhas, canjicas, pés de moleque, bolos de milho e milhos assados e cozidos que aguentavam comer, vestidos à caráter com bigode e cavanhaque pintados e chapéu de palha, aproveitavam o período para se esbaldar nos palhoções espalhados pela cidade), [José Carlos] quando não estava recolhido ao quarto, pensando, escrevendo ou destilando suas poções e unguentos, José Carlos recebia visitantes, ocasião em que, deixando-os com pulgueiros na orelha, dizia que, ao queimar fogueiras, soltar balões e disparar rojões desde o começo do mês como se quisessem noticiar a chegada do São João à capital do forró, seus vizinhos faziam como, muitos anos atrás, fez a tia Isabel para avisar à sua mãe que o primo Joãozinho estava para nascer.

A súbita decisão do primogênito, lembrou à mãe situação semelhante ocorrida há alguns anos, quando, presos no lamaçal surgido de uma tempestade completamente fora de hora, só conseguiram retornar incólumes graças a (inesperada) presença de José Carlos, que, no meio da tormenta, do nada, fez surgir o touro Trovão para puxar e desatolar a toyota em que viajavam.

- Vai acontecer alguma coisa, hoje, Zeca? - perguntou-lhe a mãe Maria, sem esconder o medo e recebendo como resposta o sorriso de sempre.

Como esperado, a festança daquela noite trouxe muitos imprevistos.

Ao invés de cumprir a rotina dos anos anteriores, repetindo a alegria e a animação sem novidades, a véspera de São João foi diferente, a começar pelo encontro casual com primos e amigos de infância, que, no embalo da alegria de sempre, animaram a mais animada das quadrilhas juninas já vistas na cidade em todos os tempos. Em fato inédito, naquela noite, até José Carlos, que, nunca dançara na vida, ensaiou uns passos do balancê, desistindo, logo em seguida, em meio à gargalhada geral, para arrancar mais risos ao marcar uns passos da quadrilha.

Aquela noite especial estava para a folia e para a brincadeira. Muita gente quis se aproveitar da animação de José Carlos para fazer pedidos. Já sabendo a resposta do filho, Maria espichava um soslaio para confirmar o balançar de cabeça e o sorriso que ele sempre usava como resposta. A mãe tinha razão. Mesmo entregue a alegria da festança, José Carlos resistiu aos pedidos e armadilhas dos primos e amigos, que queriam fazê-lo benzer simpatias e revelar mistérios que só ele sabia, e das moçoilas casadoiras, que, num misto de fé e enxerimento, diziam confiar mais nele do que em Santo Antônio ou nas ciganas e cartomantes do pavilhão do amor que diziam saber fazer namoros e casamentos.

E, de baião em baião, de xote em xote, a noitada avançava divertida. Foi quando aconteceu aquilo que, provavelmente, fora a causa do chamado que levara José Carlos à cidade naquela noite.

Passava da meia-noite, quando, pouco depois do desconforto que doeu a nuca de José Carlos, em meio a um alarido, a palhoça foi invadida por bandidos.

Como se não houvesse uma justiça a quem prestar contas ou uma polícia para fazer valer a lei, armados até os dentes, tratando homens, mulheres, jovens e velhos com igual brutalidade, sete encapuzados ameaçaram e roubaram a todos, levando o que podiam, desde dinheiro e cartões de crédito até joias e telefones celulares. Como primeiro milagre daquela noite (jamais reconhecido), a presença de José Carlos - que, tão logo percebeu a movimentação, determinou a 'calma', impedindo a reação dos mais valentes, até mesmo nas chances surgidas quando eram atados às cadeiras - poupou os foliões da violência que os aguardava.

Após minutos que pareceram eternos, já com rostos à mostra e alforjes cheios, os facínoras abandonaram o galpão, deixando, além de medo, raiva e revolta, um rastro de angústias, pois, a guisa de salvo-conduto, levaram mulheres como reféns.

Só depois de alguns segundos, com a certeza de que não havia mais qualquer perigo para a sua gente, José Carlos se movimentou e, confirmando que no mundo não havia nó capaz de segurá-lo, desvencilhou-se imediatamente das amarras para correr em socorro às mulheres.

Para desilusão dos irmãos, amigos e primos, não esboçou qualquer preocupação em desamarrá-los. Na realidade, era assim que os queria. Conhecendo-se como se conhecia, José Carlos sabia que o resgate das reféns não seria difícil, desde que outras pessoas, especialmente as queridas, não interferissem na ação, pois, no entusiasmo, poderiam arriscar-se ou envolver-se em perigos desnecessários, desviando a sua atenção.

E, imaginando que a maior dificuldade que enfrentaria seria inventar uma história plausível para explicar o rápido resgate, saiu para a peleja.

Enganou-se.

A sensação estranha veio como um pequeno coice no instante em que deixou a palhoça.

Sentindo o olhar maligno, não precisou qualquer sinal adicional para perceber a companhia indesejável. O inimigo da obra de Deus estava ali e, sem dúvida, era causa da malvadeza cometida há pouco na palhoça.

Enquanto corria para resgatar as mulheres orientado apenas pelo sentimento que, automaticamente, apontava a rota a percorrer como se um rastro iluminado estivesse indicando o caminho a trilhar, José Carlos continuou a sentir o encosto. Não havia dúvidas. O velho inimigo circulava pela multidão, saltando de corpo em corpo para acompanhá-lo.

Aquela não era a primeira vez que José Carlos sentia a presença do mal.

Há muitos anos, quando do maior dos retiros cumpridos no deserto de Fazenda Nova, ao tempo que purificava a alma e fortalecia o espírito com jejuns, orações e louvores, ele fora acossado muitas vezes pelo inimigo, que, sob diversas formas e modos, tentou seduzi-lo com refrigérios, carinhos e prazeres, dinheiro, riquezas e poder, saúde, conhecimentos e vida eterna. Recordando os encontros anteriores, José Carlos atentou que, embora tivesse aparecido sob muitas formas humanas e bestiais, os olhares diabólicos que o miraram antes eram os mesmos que o miravam agora - mesmo brilho, mesma intensidade, mesma maldade.

Não havia dúvida.

Estava diante do inimigo de sempre.

O confronto para o qual fora preparado por toda a vida estava se aproximando.

Embora pronto para o embate, José Carlos foi tomado pela ansiedade. Daquelas que sentia como aviso quando algum perigo estava prestes a ameaçá-lo. Este novo aviso não podia dizer respeito ao sequestro, pois este ele já tivera horas antes. O que seria agora? E se, sabendo que ele correria em socorro às mulheres, o primeiro ataque fosse parte de um plano para afastá-lo da cidade, para possibilitar um mal maior? Foi quando, numa visão, como ocorria de vez em quando, duas imagens se superpuseram. Numa delas, as mulheres que amava - a mãe Maria, a tia Isabel e as primas - estavam cercadas por chamas num lugar desconhecido. Na outra, os bandidos, os mesmos que tinham cometido o sequestro há pouco, estavam de volta à palhoça ameaçando seus irmãos, amigos e primos com tochas ardentes. Era isso. O demônio criara uma armadilha para colocá-lo no dilema de escolher, entre pessoas amadas, aquelas que deviam morrer pelo fogo.

Entre a cruz e a espada, José Carlos exasperou-se. Àquela altura, mesmo sabendo que sua presença era requerida em Caruaru, não podia interromper o resgate das reféns, pois perigos mais prementes as ameaçavam. Apostou na fé. Haveria hora para a cruz e hora para a espada. Sem ligar para o cansaço, correu o mais rápido que pode e, sempre seguindo os sinais, foi guiado a fazenda abandonada. Confirmando a visão que tivera há instantes, um incêndio queimava as construções de apoio.

Em mais um milagre daquela noite, José Carlos chegou ao silo exatamente no momento em que as chamas cresciam para tomar toda a edificação. José Carlos nunca soube se por conta do próprio arrebatamento ou em obediência a alguma armadilha do inferno, mas, o fato é que, como num toque de mágica, as portas do silo em chamas não esperaram pela sua chegada para abrir.

Ele foi rápido.

Cruzou a cortina de fogo e, de imediato, foi conduzido pelos sinais às mulheres entregues pelas forças do mal para queimarem vivas, amarradas umas às outras numa espécie de sacrifício aos infernos. Impulsionado pela força de sempre, José Carlos já sabia o que fazer e, em segundos, Maria, Isabel e suas primas estavam desamarradas em segurança, fora do silo em chamas. Uma vez livres, chorando e sorrindo ao mesmo tempo, sem atenção para as coisas roubadas surgidas milagrosamente a seus pés, as mulheres, incluindo a mãe Maria, se curvaram em respeito a José Carlos, que, recusando a reverência, sorria o sorriso de sempre.

Em verdade, ele queria entregar-se à comemoração, mas o dever o chamava.

As mulheres, então, testemunharam um momento ímpar.

Com intensidade inédita, José Carlos, sentiu mais um daqueles chamados que obedecia sem pestanejar. Por algum dos sinais que recebia nos momentos mais graves, soube que, para evitar a instalação de mais um inferno sobre a terra de Deus, precisaria estar de volta a Caruaru ainda naquele instante. Uma tarefa impossível no mundo dos homens, pois, se tentasse correr, como fizera há pouco, não chegaria a tempo de evitar a tragédia anunciada e, neste caso, teria sido involuntariamente cúmplice do mal. Jamais se perdoaria e sua vida de braço terreno da providência divina perderia sentido.

Para defender o mundo dos homens das coisas do mal precisaria recorrer aos poderes mágicos que tinha por delegação e herança.

Sob o olhar espantado das mulheres, que nunca tinham presenciado seus momento de meditação, José Carlos evocou a ajuda de Deus. Falada em língua desconhecida e modulada pela sintonia dos grandes momentos, a prece foi atendida, redundando na abertura de um portal incandescente, pelo qual, desafiando a luz que dele emanava, José Carlos entrou.

Até hoje ninguém soube explicar o acontecido.

De repente, sob um copioso temporal caído sem aviso para apagar o incêndio que começava a consumir o pátio do forró no centro de Caruaru, surgido do nada, José Carlos entrou na palhoça para desamarrar os irmãos, primos e amigos. Com o sorriso de sempre, mas com voz de quem não admite contestação, ele orientou sobre onde e como as mulheres deveriam ser buscadas.

-Elas estão bem. Podem ir sem medo. Os bandidos já voltaram para o lugar de onde jamais deveriam ter saído. Vão em paz. Eu estarei sempre com vocês - disse José Carlos ao beijar a face de cada um dos irmãos e dos primos, à guisa de despedida.

José Carlos nunca mais foi visto em Caruaru.

Pelo menos em carne e osso.

As mulheres disseram que, depois de salvá-las da morte certa pelas chamas, José Carlos desaparecera numa explosão de luz. Em depoimento contraditório, os homens disseram que, na mesma hora, surgido do nada, sob um temporal (que os serviços meteorológicos juram não ter caído naquela madrugada), José Carlos aparecera na palhoça e, depois de expulsar os vultos que manobravam as tochas assassinas, os libertara, indicando onde e como deveriam buscar as mulheres. Muitas outras pessoas afirmaram ter visto, por mais de uma vez naquela noite, uma espécie de cometa rasgar os céus do agreste num vai-e-vem sem sentido. O certo é que, da mesma forma que os bandidos, depois de salvar as pessoas, José Carlos desapareceu naquela noite.

Desde então, sem nunca perder a esperança de reencontrar José Carlos, todos os anos, na véspera de São João, uma crescente multidão acorre à praça do forró para se juntar aos crentes e devotos em orações por aqueles que sofrem queimaduras.

- Que José Carlos volte e sempre nos proteja e nos livre do fogo e do mal - o primo Paulo de Tarso concluía a longa oração.

- Amém! - respondem todos.

(*) Alexandre Santos é ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural