Cíntia, a menina com cabelo de espinhos

Cíntia é uma pequena garotinha tão espevitada quanto curiosa. No alto de seus sete anos, ela não para de correr de um lado para o outro pelo apartamento de Jandira.

Ela já “zerou” todas as atividades imagináveis que poderia realizar dentro do pequeno local que é cuidado com tanto zelo pela experiente professora e escritora que pede para a garotinha chamá-la carinhosamente de Janda ou mãe.

Em tempos cercados de receio e insegurança para sair de casa por causa de um “bicho-papão” da saúde das pessoas, segundo Janda.

- Bicho-papão da saúde?

-Isso, Cíntia. Um tal de Corona, ele é responsável por deixar as pessoas dodói caso entrem em contato com ele.

-É por isso que não posso sair de casa?

-Eu também não, só pra coisas importantes como ir pra farmácia ou pra padaria.

-Pra comprar doce de leite.

Ri e se diverte a garotinha enquanto se delicia com um pedaço gigante de doce de leite maior que sua mãozinha. Logo, a garota continua.

-Mas mãe, quero voltar pra escola.

-Nunca pensei que ia ouvir isso.

-Pra ver meus amigos, a dona Joaquina, o porteiro Pedroca. Quero sair de casa.

-Eu sei, Cíntia. Mas é importante ficarmos aqui um pouco, até o bicho papão do Corona ir embora.

-Tô cansada de jogar videogame, pular corda, pintar, desenhar a Hello Kitty, jogar stop, usar o celular.

-Ufa! Sério? Mas você pode falar com seus amigos.

-É, mas não é a mesma coisa, quero poder brincar com eles. Você entende?

Cíntia vai até a cozinha e pega mais um doce de leite.

-Só mais esse tá, Cíntia. Depois escovar os dentes e cama.

-Ah, sério? Cama?

- Tenho uma surpresa pra você.

Então, Cíntia, muito curiosa, acaba de devorar rapidamente seu doce, vai escovar os dentes e depois para a cama.

Janda senta ao lado da garota que continua curiosa.

-Qual a surpresa?

Janda dá um beijo na cabeça de Cíntia que fica confusa e um pouco triste.

-Só isso?

-Isso e vou te contar uma estorinha.

-Já sei. Do coelhinho da páscoa? Chapeuzinho vermelho? Bela adormecida? Você já me contou todas essas.

-Não.

-Ah, é a do Binho, o bêbado?

-Não. O que é isso? Binho, o bêbado?

-Esquece... foi o Toninho que me contou, era o tio dele.

-Quem é Toninho?

-Era repetente. Se mudou pro Canadá agora. Canadá ou Calcutá? Sei lá.

-Ah... mas não. Chama: Cíntia, a menina com cabelo de espinhos.

-Cíntia que nem eu. Que legal. Beleza mãe, vai nessa.

-Okay.

Janda se ajeita melhor na cama e continua.

-Cíntia era uma pequena garotinha que nasceu... saindo, graciosamente, de dentro de Sandra, sua querida mãe, no meio de uma sala suja dentro de um pequeno barraco em uma favela. Tá me acompanhando?

-Não sei não, mãe. Tem muita coisa aí.

-Na verdade, não tinha quase nada e Sandra vivia num lugar muito sujo e muito pequeno.

-Menor que nosso apartamento?

-Menor que esse quarto!

-Caramba, pequeno mesmo, hein.

- Sandra trabalhava como catadora de lixo e não tinha onde deixar Cíntia, então levava a garotinha com ela para muitos lugares sujos e perigosos.

-Agora tô entendendo. Prossiga por favor.

-Prossiga? Legal, bonita palavra.

-Bonita é você, mãe.

Janda suspira e sorri até continuar a estória.

- A menina vai crescendo em meio ao lixo e a violência. Conforme cresce, seu cabelo começa a crescer também cheio de espinhos, só isso, espinhos e algumas folhas secas. E as outras pessoas olhavam para Cíntia com estranheza e aversão. Por causa dos espinhos na cabeça.

-Por que ela tinha espinhos na cabeça?

-Todo mundo é diferente e ela nasceu com espinhos na cabeça.

-Ah tá. Okay. Prossiga, por favor.

- Quando já tinha de quatro para cinco anos, Cíntia estava ajudando sua mãe a pegar alguns materiais leves, como garrafas de plástico. Mas estava ventando muito e Sandra foi pro meio da rua pra pegar o objeto. De repente, um carro atropelou a mulher.

-Nossa! Que estória triste mãe.

-Calma que vai piorar.

-Então não quero ouvir.

-Mas tem um final feliz, eu prometo.

-Okay, então prossiga.

-Vou prosseguir. A pequena Cíntia continuou pegando material reciclável, só que agora não tinha onde dormir, então andava pelas ruas, sempre sozinha. Seu cabelo estava bem maior e cheio de espinhos, grandes e grossos. Às vezes ela pedia dinheiro no farol, às vezes estava brigando, apanhando ou batendo em crianças de rua que tentavam tocar em seu cabelo.

-Nossa!

- Às vezes ela estava no lixão, pegando lixo e, principalmente, procurando por comida.

-No meio do lixo?

-Isso, no meio do lixo...

-E ela achou doce de leite?

-Nem doce e nem leite. Mas ela não parava de procurar. Às vezes a garotinha dormia lá mesmo, no meio do lixo. Às vezes na rua, em tubos de encanamento, debaixo de bancos de praças. Mas ela tentava se aproximar de outras pessoas, até mesmo para não dormir sozinha, mas acabava sempre excluída e abandonada.

-Por causa do cabelo?

-Isso. O cabelo tinha muitos espinhos e as outras pessoas não gostavam.

-Cadê a parte boa? Você disse...

-Tô chegando lá. Depois de algum tempo, ela foi parar num orfanato e adivinha... mesmo lá onde tinha várias outras crianças de sua idade, ninguém queria brincar com ela.

-Entendi.

- Então, ela continuou sozinha e excluída em um canto. Seus cabelos ficaram muito grandes, com espinhos e folhas secas e murchas. Ela sempre ficava sentada debaixo de uma árvore que também tinha folhas secas e murchas

Janda observa Cíntia que parece confusa e um pouco triste.

-Esse é o fim?

-Não. O fim vem agora...depois de algum tempo, uma surpresa. Uma jovem mulher se interessou por Cíntia que continuava muito triste debaixo daquela árvore. Mas a mulher se aproximou de Cíntia e deu um forte abraço na menina que esboçou um pequeno sorriso.

-Que legal!

-E de repente, depois do abraço, começou a surgir um pequeno broto do cabelo de Cíntia.

-Agora eu tô gostando.

-Que bom.

-Alguns meses depois e depois de algumas visitas, a jovem mulher apareceu para uma última visita.

-Última?

- Isso, vou te explicar. Espera só um pouco. Lembra da árvore que a menina ficava que tinha folhas secas e murchas?

-Sim.

-Então, a menina estava lá esperando pela mulher. Só que árvore agora estava muito florida com flores de todos os tipos. Parecia um arco-íris.

-Eu gosto de arco-íris.

-Eu também. E a menina estava sorridente, seu cabelo também parecia um arco-íris com flores de vários tipos, de várias regiões do mundo. E todas as outras crianças brincavam com ela agora.

-Que legal. Adorei, mãe.

-E esta foi a última visita, porque a jovem mulher adotou a garotinha e levou Cíntia para morar com ela. E a menina está sempre sorrindo por onde passa e sempre fazendo muitos amigos... e comendo muito doce de leite.

Janda está muito emocionada, escorre uma lágrima de seu rosto. Cíntia sorri e dá um beijo no rosto de Janda que retribui o beijo.

-Te amo, mãe!

-Eu também te amo, Cíntia. Boa noite.

Fim.