O julgamento final

O julgamento final – de coronel a conde

Alexandre Santos

Como sempre [ocorria] ao final das tardes, eles se reuniam no salão principal do velho casarão.

Era lá onde matavam tempo da monotonia interminável, aparecendo do nada (e, quando lhes apetecia, também, desaparecendo no nada, num piscar de olhos) para zanzar ou conversar sobre coisas e [sobre] gentes conhecidas e por conhecer. Embora alguns moradores do Engenho desconfiassem, eles, de fato, podiam interpenetrar tudo, inclusive em si próprios, e, por isso, a sala nunca estava cheia. Em contraponto, também nunca estava vazia. De qualquer forma, mesmo visitada em todas as horas do dia e da noite, era por volta das cinco que, em consequência da presença da mais alta casta da confraria, a sala ganhava um clima mais pesado, tão denso que, de algum modo, eles ficavam perceptíveis até mesmo aos mais insensíveis.

Fora naquela Casa Grande onde, há muito tempo, o visconde Parfisal, assim como alguns dos outros ali presentes, nascera, crescera e envelhecera. Não era, portanto, sem razão a sua intimidade com móveis, espelhos, lustres, candelabros, lamparinas, louças, pratarias, talheres, portas, vitrais, janelas, namoradeiras, jardineiras, degraus, cantos, recantos, salas, quartos, banheiros, corredores, dispensas, copas, porões, sótãos, varandas, escadarias, estufas, jardins e, mesmo, campos, capela, cemitério, estrebarias e senzalas do Engenho. Além das coisas, cômodos e locais, Parfisal conhecia os parceiros. Ele conhecia por igual, não só cortesãos recém admitidos, como, também, confrades graduados situados no topo da hierarquia, inclusive o todo-poderoso Marquês, senhor de muitas confrarias, a quem, por todas as razões, todos temiam e deviam respeito e obediência. O conhecimento de Parfisal decorria, da já longa convivência na confraria e, eventualmente, de conhecimentos anteriores, fosse por amizade ou parentesco, fosse por ouvir falar em lendas, conversas e orações ao longo dos tempos. Alguns dos mais novos - como os baronetes Matheus e Jerônimo -, além de contemporâneos, tinham sido seus colegas em colégios, campanhas militares ou companheiros n'alguma quadra pela vida. Dos mais velhos - uma turma mais enrugada e, talvez por isso, mais retirada -, lembrava apenas o visconde Eusthachio, o comendador Venâncio e o barão Milvernes, cujas faces sombrias e carrancudas adornavam quadros pendurados nos cômodos mais escuros da Casa Grande, impondo horror sem limite, especialmente à criançada. Agora, não havia mais receios. Superada a grande inflexão da vida, independentemente de como e quando houvera a passagem, imunes ao passar do tempo, temendo apenas a ira do Marquês, eles conviviam sem medo uns dos outros, se divertindo com lembranças comuns, buscando explicações para o inexplicável, remoendo recordações do passado distante, elucubrando sentido para a arte e para a ciência e, sobretudo, avaliando candidatos para a seleta confraria da Casa Grande.

Sem esconder a empáfia da nobliarquia, Parfisal e seus colegas tinham a estirpe como ponto essencial da confraria e não gastavam tempo com parceiros menores. À ralé, estavam reservados outros ambientes, quem sabe, até mesmo, o relento dos campos e jardins da propriedade. Além de rejeitar qualquer resquício de virtude, naquela confraria não havia lugar para plebeus, mestiços, pobres, nem, mesmo, novos-ricos, reservando assento, apenas, para legítimos representantes das tradicionais linhagens de velhos coronéis, senhores de engenho e herdeiros de famílias abrasonadas. De fato, não era qualquer um que podia ingressar na confraria. Aliás, o nariz empinado que os caracterizava decorria da rigorosa apuração e depuração de gerações e gerações curtidas na impunidade e na ausência de remorso, não havendo lugar para desprovidos de galardões próprios da genealogia, da fortuna, da vizinhança e, sobretudo, da índole.

Naquele dia, ao invés da conversa enfatuada de sempre, a confraria apreciaria a eventual admissão do coronel Ernesto, então proprietário do engenho, que, segundo voz corrente entre os videntes do entremundo, já no leito de morte em meio a febres, tremores e arfares moribundos, estava prestes a fazer a travessia.

Sem dúvidas, o coronel Ernesto era um bom candidato. Em vida, todos sabiam, resistiu às tentações e, sequer, cedera à piedade recomendada pela ama-de-leite e suplicada por tantos quantos escravos açoitara sem dó ao menor deslize, afastando a opção do bosque frutado, florido e perfumado tão desejado pela maioria. Na realidade, as crueldades por ele cometidas correspondiam a pecados tão graves, que dificilmente poderiam ser purgados em penitências, por mais longas e severas que as penas pudessem ser. O visconde não tinha dúvidas de que, como tantos outros, o coronel permaneceria no Engenho por todo o sempre. Restava saber se ele tinha merecimentos para ser admitido na confraria da sala maior. Se visto pelo prisma da ancestralidade, conhecido desde a infância como 'o mal em pessoa', o coronel Ernesto estava mais do que habilitado, pois, todos sabiam, era filho, neto e bisneto de carniceiros ímpios, cuja fortuna fora construída e mantida à ferro e fogo sem respeitar cor, sexo ou idade das suas vítimas. Alguns atribuíam o cenho franzido e as outras rugas de expressão à forma como o coronel vivera, fazendo inimigos a cada minuto, distribuindo insultos e iniquidade sempre que podia.

Como esperado, ao fim daquele dia, por falta de alternativa, o coronel estava diante do Marquês - que, prontamente, antes de qualquer coisa, até mesmo da falar da corte especial que o aguardava [a ele, o coronel], evocou a condição de líder supremo do mundo invisível instalado em camadas dimensionais por sobre o território do Engenho e o fez cumprir o tenebroso ritual de submissão, obrigando-o a lamber-lhe as partes pudendas e excretoras e deixar-se penetrar por várias vezes. Ato contínuo, humilhado e cabisbaixo, sem a chance do arrependimento, o coronel foi recebido pela mais alta hierarquia da confraria, que, investida da condição de tribunal, depois de explicar tratar-se de uma deferência especial em função do seu passado, perguntou-lhe sobre os motivos pelos quais, ao invés de ele seguir diretamente para o bosque encantado ou ser enviado para alguma penitência purgatória como acontecia com a maioria, fora transferido à jurisdição do Marquês, instando-o a confessar pecados.

E, assim, inicialmente guardando algum recato, mas, progressivamente ganhando entusiasmo com os próprios feitos, o coronel Ernesto revelou-se. Empolgado, contou como, ainda menino, despertara a índole trazida do berço, despejando perversidade em moscas, baratas, formigas, coisas assim, que - talvez como treino para jornadas repetidas décadas mais tarde em seres humanos - esquartejava ainda vivas, arrancando-lhes pernas, asas e antenas, apenas para vê-las sofrer; contou como usava o tronco, o chicote e a máscara como instrumentos de punição e castigo a escravos relapsos; contou como cobrava a virgindade para que jovens pudessem morar com os pais no território do Engenho após completar 15 anos; contou como aplicava a mutilação e a morte como pena ao sinal mais leve de conspiração e de motim; contou como fez da escravatura, da exploração, do esbulho, do calote, da tortura, da ingratidão, do egoísmo e da traição um método regular de ganhar poder e aumentar o patrimônio. Sem qualquer arrependimento e, mesmo, uma ponta de orgulho, o coronel Ernesto falou por horas, justificando, de certa forma, os fogos e as festas anunciadas por todo o Engenho em comemoração à sua partida.

À medida que o coronel falava, os temíveis Parfisal, Eusthachio, Milvernes, Matheus, Jerônimo e Venâncio se entreolhavam espantados com tamanha concentração de maldade que tinham pela frente e, de imediato, souberam estar diante de um demônio pronto e acabado, não só habilitado à confraria, mas, também, fadado aos mais altos postos da corte do Marquês.

Eles tinham razão.

No dia seguinte, após mencionar a sua capacidade de salpicar a terra com sangue, suor e lágrimas, conforme apurado pela corte de julgamento, o Marquês concedeu o título de Conde Merchiel ao coronel Ernesto e o designou para fiscalizar e combater excessos de felicidade, fartura e liberdade no Engenho, recebendo, em troca, a promessa de uma nova Era plena de tristeza, desconfiança e egoísmo e isenta de amor, alegria e harmonia. Dias mais tarde, por determinação do Marquês, em festa e pompa, um novo demônio foi admitido na confraria, tendo como missão expressa infernizar a vida de tantos quantos vivessem do trabalho nas terras do Engenho.