O carro mágico

O carro mágico

Alexandre Santos*

Seduzido pela propaganda, Merval chegara cedo ao Magic Bar.

Por aquilo que diziam os cartazes espalhados por toda a vila, colados nas estátuas, bancos das praças, postes e paredes, sem poupar, sequer, a Matriz e a delegacia, o show começaria às nove. Obedecendo às recomendações de chegar o quanto antes para garantir um lugar perto do palco, passava pouco das oito, quando, acompanhado da turma, Merval aboletou-se numa mesa de pista e, excitado, emborcou a primeira garrafa. O clima criado pela música ambiente ritmada e extremamente alta dava uma antevisão de como seria a apresentação do D-Tomatelus - banda que, segundo os críticos mais exigentes, fazia o melhor do rock mundial. De fato, preparando a clientela para o que vinha pela frente, o sistema do bar brotava decibéis e mais decibéis de puro rock, arrancando um sacolejar geral das pessoas, que, talvez pensando repaginar os arranjos originais, esgoelavam corais desafinados, graças a Deus, prontamente sufocados pelo som inconfundível de Beatles, Led Zepellin, Who, Yes, Mutantes, Metallica, Iron Maiden, Rush, Black Sabbath, Deep Purple, Rolling Stones, La Vie en Black, Pink Floyd, Bambinos, Creedence, AC/DC, Titãs, Cream, Jethro Tull, Barão e Gênesis. Enquanto isso, progressivamente empolgado e parecendo não sentir o passar do tempo, Merval bebia todas.

A euforia era completa.

A despeito da tolerância de Merval - que, àquela altura, arrebatado pela cerveja e embalado pela música de algumas da melhores bandas de todos os tempos, mal conseguia manter os olhos abertos e, sinceramente, pensava já estar ouvindo a D-Tomatelus há algum tempo -, o relógio era implacável e, sem condescendência, apontava todos os minutos de atraso. Não deu outra. Sem ver qualquer sinal da banda, os clientes pressionaram o gerente, que, já habituado à irresponsabilidade dos seus astros favoritos, ligou para o MagicCar, uma banda local e praticamente desconhecida que, nas frequentes farrapadas do D-Tomatelus, o socorria. "O show começará em cinco minutinhos", aliviado, o gerente espalhou pelo salão.

Os tais 'cinco minutinhos' prometidos pelo gerente se alongaram por quase meia-hora e passava das onze, quando, curtindo o solo elaborado do magistral GW da banda La Vie en Black, Merval ouviu o alarido. "A banda chegou", gritou alguém seguido da algazarra própria dos públicos embriagados. Sem interromper o urro que agregou às boas vindas gritadas no bar, Merval esticou um olhar à rua e não entendeu o motivo da alegria das pessoas. Ao invés do furgão que esperava ver, dirigido por um cabeludo (que, pensou Merval, tinha de ser da banda), um velho Celta multicolorido manobrava para estacionar.

Mas, o entusiasmo das pessoas tinha razão de ser.

Apressado, um homem vestido completamente de negro e longos cabelos realçados por uma cartola surreal apeou trazendo uma guitarra e, distribuindo os sorrisos esperados pelos fãs e um único olhar à Merval, se dirigiu ao palco para deixá-la [a guitarra] e, sem se dar ao trabalho de dizer qualquer coisa ao cabeludo que chegava com um baixo, deu meia-volta e retornou ao carro ainda com as portas abertas. Virando outra tulipa, Merval viu quando um terceiro cabeludo emergiu do Celta, trazendo um violão. A cena parecia ter sido longamente ensaiada, pois, ao tempo que um músico deixava algum instrumento no pequeno palco, um outro entrava no carro por uma porta e um terceiro saía pela outra [porta] com algum outro [instrumento]. O vai-e-vem continuou por alguns minutos. Quase hipnotizado pelas idas e vindas dos cabeludos, Merval os viu entrar e sair do carro carregando tambores, pedestais, surdo, pratos, tom-tom, bumbo, chimbau, banquinho, baquetas, pandeirolas, pedaleiras, microfones, tapetes, teclado, sintetizador, gaita, amplificadores, caixas de som. Não parava de sair coisas do pequeno Celta, que, embora não aparentasse tamanho para tal, como se fosse a van esperada por Merval, carregava, trouxera não só a a banda, mas, também, tudo o que ela precisava para fazer o show desejado pelos fãs. Já sem noção do tempo, se dormia ou permanecia acordado, Merval não chegou a ouvir quando, depois de um breve silêncio, antes de retomar a música que embalou o resto da noite, uma voz anunciou

- Com vocês, a MagicCar Rock Band.

Àquela altura, pouco importava quem iria tocar, pois, completamente embriagado, Merval queria, mesmo, como as outras pessoas, curtir e dançar.

Muitos anos se passaram desde aquele show maluco. O jovem que, sem maiores cuidados, podia encher a cara pelos bares da cidade não existia mais. Ele desaparecera para dar lugar a um respeitável senhor, cujas maluquices e aventuras do passado eram mantidas nas entredobras da memória, de onde só saíam deliberadamente resgatadas para compensar momentos de nostalgia ou como instrumento de fuga ou contraponto às frequentes monotonias que a nova vida lhe obrigava a enfrentar.

Era, exatamente, numa destas ocasiões que Merval se encontrava naquele dia.

Ele fora convidado (e não podia deixar de ir) para prestigiar uma audição especial da Orquestra Sinfônica, que apresentaria o repertório básico da obra de Sergei Rachmaninoff - um grande compositor russo que, como dizia o pomposo folder em letras miúdas, "vem sendo reabilitado perante o mundo da arte contemporânea, depois de ter a música desprezada pelo Grove Dictionary of Music and Musicians por ser monótona e consistir principalmente de melodias artificiais e feias".

"É hoje que meu saco estoura", pensou Merval consigo mesmo.

Contrariando os termos pomposos do convite que recomendava chegar ao Teatro Municipal com meia hora de antecedência, ele estava atrasado. 'Quanta chatice' pensou [ele] ainda nas imediações do Teatro, já ensaiando o mergulho que, com um sorriso congelado nos lábios, daria no passado em busca de distração. Como de outras vezes, o devaneio daria certo. Naquela noite, ao invés da música monótona de Sergei Rachmaninoff, Merval programava rever o show do D-Tomatelus. Só de pensar na traquinagem, Merval riu consigo mesmo. Afinal de contas, o tal show de anos atrás fora uma viagem. Melhor ainda. Consciente de que - fosse pela eternidade transcorrida desde aquela época, fosse pelo excesso de álcool que consumira na ocasião - suas lembranças eram fragmentos de memória e apenas representavam sonhos (ou desejos), Merval recordava de um power trio do qual jamais ouvira falar, que, após emergir junto com uma parafernália de instrumentos e equipamentos de um diminuto carro multicolorido (Merval lembrava que, embotado pelo álcool, em certo momento, pensara ter visto um piano de cauda sair pela porta do Celta da banda), arrancara sons impossíveis, parecendo encarnar as melhores bandas de todos os tempos. Aquelas recordações não passavam de ilusão, sabia ele, mas, de toda a sorte, serviria como válvula de escape para a pasmaceira que vinha pela frente.

De repente, o ruído de um carro o trouxe do mergulho no passado inconsistente. Provavelmente, os músicos da Orquestra estavam chegando, pensou Merval, pronto para apressar o passo para a entrada principal do Teatro. Alguma coisa, no entanto, o fez voltar o olhar. Naquele momento, aconteceu alguma coisa que Merval jamais saberia explicar. O tempo parecia ter recuado. Depois de cumprimentá-lo sacando a cartola e dando a piscadela matreira de quem propõe cumplicidade para alguma trela, trajando o inconfundível fraque dos maestros, o cabeludo de anos atrás no Magic Bar passou por ele e, pouco depois, agitando a batuta como se conduzisse música, regeu a saída de pessoas e de instrumentos do pequeno Celta multicolorido. E, desta vez sóbrio, Merval viu quando, do velho Celta, aos borbotões, depois dos músicos, saíram carregadores com violinos, violas, violoncelos, contrabaixos, flautas, oboés, clarinetes, fagotes, tímpanos, pratos, gongo, tambor, triângulo, xilofone, marimba, vibrafone, corneta, trompetes, trompas, trombones, tubas e, ainda, uma harpa e um piano. Uma maluquice total.

A cena de anos atrás se repetia.

Não podia ser verdade. Alguma coisa, provavelmente o desejo de reviver o passado, tinha precocemente turvado a realidade, criando uma situação mais fantástica do que a recordação ébria programada para aquela noite. 'Comecei a sonhar mais cedo do que devia', Merval pensou divertido e, embora extasiado com a fantasia diante de si e, sinceramente, desejasse passar as próximas horas refugiado naquele passado, precisava chegar ao Teatro. Assim, meio ressabiado, [Merval] resignado à vida que escolhera para si e, decidido a enfrentar momentaneamente a realidade, cruzou o majestoso umbral do Teatro e se dirigiu ao camarote a ele reservado. Agora sim, cercado de senhores e senhores transbordantes da empáfia própria dos emergentes petulantes, era hora de mergulhar no passado. Ainda sem compreender o que acontecera minutos atrás, iniciou a meditação que, segundo queria, traria as lembranças capazes de fazê-lo suportar o xaroposo de Sergei Rachmaninoff. Fechou e manteve os olhos fechados, sentindo-se progressivamente inebriado como se, ao invés de recolhido em si próprio, estivesse bebendo mais do que o corpo aguentava. Aquela viagem nas profundezas da sua memória seria diferente, concluiu Merval pronto para seguir até onde o sonho quisesse levá-lo. Bem ao longe ouviu a salva em anúncio da chegada da orquestra. De repente, resgatando-o inteiramente da letargia, estourou a gritaria, que, inicialmente, misturou-se e, em poucos segundos, terminou por sufocar as bem comportadas palmas. Merval, então, abriu os olhos e, deixando escancarar um sorriso idiota, duvidou daquilo que estava vendo. Ao invés do Teatro Municipal, ele estava no velho e bagunçado Magic Bar. A plateia enfatuada tinha desaparecido e, em seu lugar, estava uma juventude alegre e espontânea. Aquilo era tudo o que ele queria. Da mesa de pista onde, embalado pelo álcool, misturava sons, imagens, sonhos e realidades, Merval ouviu quando, depois de uma piscadela cúmplice, envelopado num fraque preto que poderia ter vestido Sergei Rachmaninoff e cartola na cabeça, o cabeludo anunciou

- Somos a MagicCar Rock Band e vamos fazer o show mais maluco que vocês já participaram.

Merval não tinha razões para duvidar do cabeludo.

(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores