BabaMangaba

BabaMangaba

Alexandre Santos*

Quando despertou, Jonas se viu em BabaMangaba.

Ele esfregou os olhos e se beliscou. Era verdade. Estava, mesmo, em BabaMangaba.

Foi um momento muito especial. Quase morreu de emoção. Afinal de contas, BabaMangaba era o suprassumo do sonho de felicidade de todo mundo, até mesmo dos mais felizes, incluindo aqueles que já tinham experimentado o gozo celestial nas ladeiras de BubaLou, as delícias das praias internas da bacia lacustre de MataMamão, a fragrância inebriante das abelhas almiscaradas do BaixoNepal e o colorido exuberante dos campos inclinados nos altiplanos floridos de BeloPinto. Assim como os outros, Jonas sempre pensara em BabaMangaba como um paraíso utópico, que, de tão inalcançável, estava além do horizonte, sempre além do horizonte. E, neste caso, de nada adiantava singrar na sua direção, pois BabaMangaba nunca seria alcançada. Agora, no entanto, realizando o sonho impossível, ele estava em BabaMangaba, vendo bem diante de si os pináculos, os casulos e as teias jamais vistas, mas estranhamente presentes em lembranças que não tinham como ser lembradas.

O que Jonas teria feito para merecer tamanha prenda? Teria sido compensação pela farta lábia picante que deitara em vitalinas viçosas ainda enroscadas no cabo da Boa Esperança? Ou seria pagamento pelas botelhas entornadas à conta-gotas na longa campanha boêmia pela promulgação do Ato da Farra Real? Quem sabe pelas serenatas cantadas ao pé do carvoeiro negro que guardava o sobrado maior? Quem sabe? Tudo era possível, até mesmo reconhecimento às genuflexões nem sempre sinceras prestadas a sacerdotes de todos os credos. De qualquer forma, independentemente dos seus eventuais méritos, ele estava ali [em BabaMangaba], pronto, se preciso, para embarcar no tapete voador que, como bacurau viciado, a cada noite, visitava todas as estrelas faiscantes no firmamento iluminado daquela parte do universo.

Ele não lembrava de como chegara lá. Uma vaga recordação lá no fundo da memória esmaecida mostrava a silhueta de bailarina agitada ao ritmo do rufar afro, em surpreendente equilíbrio sobre a pétala gigante da qual pendiam carnês premiados prontos para serem colhidos por quem quisesse, às primeiras horas da manhã. Será que a viagem à BabaMangaba estava num daqueles pingentes? Era possível. Soube, tempos depois, que, entre os prêmios, estavam uma temporada de pesca ao grande tubarão king nas águas tépidas de Boa Viagem e um ingresso para o jogo de futebol no qual, depois de estar perdendo por sete a um, o Brasil batia a Alemanha por oito a sete.

Não houvera trem, helicóptero ou submarino. Apenas chegara lá. De repente, sem aviso ou companhia, aceitou a mão estendida ninguém sabe por quem e, já com o pescoço decorado por um colar de conchas faiscantes, pisou o solo macio e enevoado daquela terra encantada. Simples, assim. Se precisasse, Jonas não saberia como voltar ao lugar de onde viera e vivera por toda a vida.

Ah! Como Jonas estava animado. Será que o pássaro RockBeatles existia, mesmo? Há muito tempo, com a ressalva de ter, apenas, ouvido rumores através de um viajante no tempo, uma cigana lhe falara da ave cujo canto agradava a todos, solfejando o repertório mágico de Liverpool. Será que, como repetiam mães e avós por todo o mundo, entre uma viagem e outra, Papai Noel pousava em BabaMangaba para dar de comer e de beber às renas voadoras em estrebarias de prata espalhadas por fazendas flutuantes? Podia ser. Tudo podia ser. Agora, tinha todo o tempo do mundo para descobrir isto e muito mais.

BabaMangaba era mesmo um lugar encantado.

Tudo era diferente da mesmice a que estava habituado.

A lista de surpresas parecia não ter fim.

Estaria enganado ou o céu de BabaMangaba era, de fato, multicolorido e, conforme a posição do olhar, além de assumir qualquer cor, podia variar a tonalidade e a luminosidade? De repente, como pano de fundo para o teatro da vida, o céu estampou matiz roxo bem claro, por onde, acompanhados por charretes puxadas por juntas galhadas de carneiros listrados, junto com simpáticos pinguins lustrosos, revoaram cisnes, gansos, patos e marrecos verdes, vermelhos e azuis. Ainda extasiado com o espetáculo, viu como as nuvens faziam bico para soprar lufadas de hortelã sobre cardumes que, graciosamente, sob a luz prateada emanada por cinco luas cheias, nadavam em voo acrobático de sacada em sacada para receber seu quinhão de guloseimas.

Jonas caminhou a esmo por um longo tempo que jamais saberia precisar a duração, muito menos a posição naquela terra sem bússola. Viu coisas do arco da velha. Não era sem razão que BabaMangaba fazia a felicidade de todos. Mamutes e colibris partilhavam o ninho com pequenos jacarés azulados sem qualquer atrito. Sapos garnisés patinadores cantavam uma mistura de ópera com axé e bolero harmonizados pelo som de bandolins, cravos, harpas, cuícas e pandeiros.

Sem qualquer cansaço, como se não tivesse zanzado sem parar desde a chegada a BabaMangaba, Jonas entrou naquilo que parecia um bar. O letreiro em neon dizia apenas GrapetteRose. Poucos segundos no local, no entanto, foram suficientes para mostrar que alí havia muito mais do que uma simples casa de diversões. Com efeito, GrapetteRose era palco simultâneo e sinfrônico de restaurantes, cafés, boates, tabernas, pubs, danceterias e bares, superpondo dimensões que reuniam gentes, costumes e modas de todos os tempos. Ali, tudo era surreal. Animadas individualmente por sonoridade limpa e sem interferência ou cacofonia, em camadas épicas isoladas umas das outras, como se o conjunto não estivesse permeado pela profusão das músicas nelas tocadas, pessoas vestidas segundo a moda do seu tempo, conversavam, comiam, bebericavam, jogavam e dançavam ao som, conforme o caso, de valsas, frevos, forrós, fandangos, foxtrotes, tangos, kuduros, merengues, polcas, salsas e rumbas, ocupando simultaneamente o bar, o cassino, o dancing e o salão, apertando garçons, que coleavam a clientela e se esgueiravam por entre mesas, balcões e távolas para atender os contemporâneos, sem qualquer contato com outrem. Impressionado com sua primeira experiência sinfrônica, Jonas notou que, embora ocupassem o mesmo locus, os grupos épicos não tinham qualquer relação ou dependência entre si e, retirados raríssimos casos de mediunidade, contemporâneos não viam, ouviam, sentiam ou tocavam extemporâneos. Assim, o GrapetteRose abrigava muitas festas na mesma ocasião, refletindo o espírito de BabaMangaba.

Aliás, foi justamente lá que Jonas viu como estava feliz. Na realidade, era mais do que isto. Conforme mostrava a parede espelhada do grande salão oeste do GrapetteRose, além de alegre, ele estava mais esbelto, viril, bonito e jovem. Até, mesmo, a calvice prematura e a terrível dor ciática tinham desaparecido completamente. Nas horas que passara diante do espelho, viu músculos crescerem e rugas desaparecerem. Em contraponto, também viu pessoas bonitas e jovens ficarem feias e velhas. No começo, Jonas não compreendia, o tempo, no entanto, o fez compreender o mistério. BabaMangaba espelhava a alma e o espírito das pessoas, modificando-as conforme, de fato, elas sentiam e queriam ser - velhos jovens rejuvenesciam, jovens velhos envelheciam, esqueléticos robusteciam, obesos emagreciam, feios ganhavam formosura, doentes se curavam e, assim, por diante. Tudo conforme a vontade e o sonho do freguês.

Não demorou e, mesmo sem sair daquele mundo mágico, sentindo-se jovem, forte e bonito, Jonas se viu quase em casa. Parecia milagre, mas, numa das mesas de pista do GrapetteRose, parcialmente encobertas pelos vapores psicodélicos de gelo seco, estavam suas antigas namoradas, juntas e felizes como se fossem amigas de longas datas. Fisicamente, tinham mudado nada, como se o tempo tivesse recuado de forma seletiva e ajustada à cada uma, fazendo-as recobrar o melhor dos seus melhores momentos - estavam jovens, viçosas, belas e tão apaixonadas quanto no passado em comum. Provavelmente por conta dos encantos próprios de BabaMangaba, as moças sorriam e, sem qualquer resquício de ciúme ou ressentimento, como se fossem cúmplices de alguma traquinagem, jogaram beijos e abriram-lhes os braços em franco convite à festa. Jonas apurou o olhar na direção do dancing do GrapetteRose e percebeu que, por entre a fumaça colorida, o cenário mudara. Como num caleidoscópio, as namoradas se fundiram numa só, em síntese daquilo que de melhor havia em cada uma. Nada de mau humor e TPM, só carinho e compreensão. Desconfiado de que aquele reencontro fosse parte daquilo que ciganas, videntes, bruxas, mágicos e feiticeiras chamavam de 'coisas de BabaMangaba', Jonas reconheceu ser hora de comemorar e, coração em festa, fechou os olhos e caiu na farra.

Nunca vamos saber, ao certo, o que aconteceu depois, pois, logo em seguida, sem saber se sonhava, se alcançara a grande inflexão da vida ou se enlouquecera, Jonas perdeu os sentidos e, desde então, permanece com um sorriso de quem ainda está em BabaMangaba.

(*) Alexandre Santos é presidente da Associação Brasileira de Engenheiros Escritores