Archibaldo
Archibaldo
Alexandre Santos
Como todo velho, Archibaldo era tido pela criançada como 'meio maluco'.
E, talvez, fosse mesmo. Afinal de contas, sempre que provocado, sem pestanejar, de modo recorrente, ele [Archibaldo] contava histórias do arco da velha. Histórias impensáveis, ocorridas em localidades de coordenadas caóticas, destas que enlouquecem bússolas e que nem sempre estão registradas nos mapas. Localidades tranhas e estranhas. Umas tórridas, outras glaciais. Umas planas, outras escarpadas. Umas floridas, outras desérticas. Umas nubladas, outras límpidas com céus estrelados e marcados por arco-íris cruzados, várias luas e sóis de todos os tamanhos e de todas as cores. Histórias com personagens lúcidos ou insanos que perambulavam, flutuavam ou singravam territórios, ares e mares igualmente lúcidos ou insanos. Gente viva, gente morta e, às vezes, ainda por nascer. Gente vestida e gente nua. Roupas esquisitas, como se fossem fantasias carnavalescas ou fardamento de todos os exércitos existentes ou por criar. Histórias do hoje, do ontem e do amanhã, misturando épocas em miscelânea sinfrônica inimaginável. Interpenetradas, superpostas, articuladas, justapostas ou separadas, as histórias destacavam dinossauros, jacarés, clones e mutações genéticas em cenários movimentados por bigas, charretes, carros-de-boi, automóveis e naves estrelares em cenas protagonizadas ou testemunhadas por Platão, Péricles, Jesus, Marx, Aníbal, Alexandre Santos, Cinderela, Hitler, Roosevelt, Churchill, Branca de Neve, Asterix, JK, Luther King, Mandela, Bush, Lula e uma multidão de face marcada por feitos, sonhos, crimes, omissões, revoltas, transformações. Coisas inacreditáveis ocorridas num lugar fantástico, cheio de aventuras, mentiras, verdades, mistérios e mágicas. A julgar pela grandiosidade dos episódios, o lugar era enorme, tão grande que não fazia fronteira com nada e, como se não houvesse outros [lugares], como metástase, estava por toda a parte, presente em todo o universo (esta, talvez, fosse a explicação de o lugar falado por Archibaldo não ter localização definida, estando, ao mesmo tempo, em todos os cantos, se espalhando sem limites por toda a rosa dos ventos). Um lugar que, de tão grande, abrigava todos os outros, contendo as suas manhas, dinâmicas e segredos. Um lugar sem qualquer amarração no tempo ou no espaço, onde presente, passado e futuro conviviam, misturando pessoas, locais e épocas. Um lugar múltiplo, amplo e complacente, que, simultaneamente, dava suporte e cenário para a mesmice do cotidiano, a festas da carne e do espírito, a guerras sanguinolentas e a celebrações da Paz.
Num recanto iluminado daquele lugar espetacular, lado a lado, estavam o melhor da arte, da ciência e da tecnologia com planos de viagens interestelares e interplanetárias, textos irretocáveis da melhor expressão literária já produzida; projetos de pontes transoceânicas e de estranhos veículos multiflex aero-anfíbios; dicionários grafonéticos de todas as línguas e dialetos; antídotos para a lei da gravidade e para a inexorabilidade do tempo; a fórmula do controle das forças da natureza; um cardápio completo da gastronomia mundial com o mais nutritivo, bonito e saboroso da culinária de todos os países e regiões; um minucioso atlas do caminho dos ventos, das correntes marinhas, da presença dos geiseres, dos calores e da incidência solar, dos mares bravios e das quedas d'água; bulas para a cura de todos os males e doenças; pinacotecas com a obra dos grandes mestres da pintura; parques com as construções e esculturas mais imponentes, em rico mostruário da beleza e da utilidade dos artefatos humanos; álbuns com o retrato de realidades, sentimentos e sensações fotografados no momento ideal; a coreografia das pessoas e da natureza dançada por todos os tempos em todos os lugares; a perfumaria dos cheiros que enlevam almas ao delírio com novas e velhas fragrâncias; galeria das músicas e dos ritmos que dão vida aos movimentos e aos sons do universo; discussões sobre as éticas e estéticas dos pensamentos de todas as correntes filosóficas; paineis com a arquitetura-símbolo dos povos; vestuária com a beleza de cobrir e proteger os corpos e as coisas; o conhecimento de tudo, do todo e do nada.
Como certos móveis e pessoas (cômodas, cristaleiras, motoristas, mendigos e garis, por exemplo), Archibaldo era completamente invisível para muitos, parecendo-lhes sequer existir. De fato, embora estivesse alí desde sempre, Archibaldo era visto apenas por alguns (os quais, diga-se de passagem, apesar de vê-lo, não necessariamente o compreendiam). Na realidade, conhecido, cumprimentado e visitado por poucos, Archibaldo era desdenhado pela grande maioria (pejorativamente referida pela minúscula parcela que o enxergava de NBL). Para a maior parte daquelas pessoas, uma página em branco talvez fosse mais eloquente do que o velho esquisito. Aliás, mesmo entre aqueles que o viam e pensavam conhecê-lo, poucos sabiam, quem, de fato, Archibaldo era. Vale dizer que, com o passar do tempo, eventualmente cumprindo o modismo Cult, com a impressão de que Archibaldo surgira do nada, gente do NBM também passou a vê-lo (ou a fingir vê-lo), sem, no entanto, compreender as coisas ditas por ele.
Para o pessoal do NBL, Archibaldo era um completo desconhecido, uma espécie de ilha cercada de mistérios por todos os lados. Sem parentes, [sem] amigos, [sem] passado e [sem] futuro. Onde nascera? Como e onde aprendera tantas coisas? O que comia? O que bebia? O que fazia para viver? O pessoal do papo solto na jogatina da vida nada sabia sobre ele [Archibaldo]. Para estes, Archibaldo era um monte de não-sei's sinceros ou de respostas inventadas na hora. Pelos escritórios, fábricas, salões, bares e esquinas, nas raras vezes que Archibaldo chegava às conversas, sem preocupação de disfarçar desdém e ignorância, não-iniciados se apressavam em conjecturas vazias - daquelas tiradas do vento apenas para o H -, em acessório verbal mais apropriado para preencher conversas do que para ajudar. Para uns, Archibaldo descendia de antigos barões e, dizendo que, por isso, a sua amizade [de Archibaldo] estaria reservada apenas aos ricos e aristocratas, justificavam seu afastamento. Outros o diziam oriundo de terras distantes e, por isso, não seria gente para querer amigos no populacho local. Outros, ainda, abafando risinhos sarcásticos, diziam que, de tanto ler e estudar, Archibaldo enlouquecera, em claro indicador de que "ler e estudar muito não faz bem a ninguém". E, nesta ambiência, as opiniões denegriam a imagem de Archibaldo ou criavam explicações plausíveis para preconceitos e, mesmo, ataques àqueles que o entendiam.
Archibaldo só era bem aceito (e muito bem aceito, quase venerado) pelos ditos intelectuais, a fatia Cult da sociedade - uma minoria formada por professores, escritores, poetas, menestréis, gente que preteria o usual em favor da cultura, gente considerada improdutiva e perdulária pela banda afluente da população e ignorada pelas massas -, que, ao invés de rechaçar Archibaldo, aceitavam suas excentricidades e o tinham como uma espécie de ídolo. Era com esta minoria que, sentindo-se à vontade, Archibaldo conversava e, com prazer, compartilhava histórias e experiências, transferindo e perpetuando os conhecimentos desdenhados pelo pessoal do NBL. E, assim, aos poucos a 'loucura de Archibaldo' - como o NBL chamava tudo o que viesse dele - passou a contaminar pessoas, as quais, por sua vez, passaram a contaminar outras e outras e outras [pessoas]. Se as coisas continuassem da forma como estavam, haveria um tempo no qual as 'loucuras de Archibaldo' estariam tão disseminadas que a minoria se converteria em maioria. Um perigo para o status quo.
A fatia Cult não sabia, mas, por aquele tempo, o NBL, sem jamais admitir o medo que perturbava-lhe o espírito e as entranhas - mas incomodado e ameaçado por antever aquilo que poderia acontecer com o fortalecimento da minoria -, [o NBL] passou a considerar os admiradores de Archibaldo como inimigos, passando a tratá-los como tal. De fato, percebendo o progressivo fortalecimento da fatia Cult pela incorporação de pessoas então esclarecidas pelos conhecimentos advindos de Archibaldo, o NBL passou a hostilizar os intelectuais. E a fatia Cult começou a sofrer perseguições inicialmente brandas, que, com o tempo, num crescendo vertiginoso, ganharam rigor até atingir o estágio da agressão. Acuados, os intelectuais temeram pelo destino do próprio Archibaldo, cuja sabedoria, todos sabiam, incomodava o NBL. A situação se agravou até que, um dia, confirmando as piores expectativas dos intelectuais, a brutalidade máxima sobreveio e, sob a alegação de proteger a sociedade da loucura, o NBL proscreveu Archibaldo, proibindo todo e qualquer contato dele com a sociedade e vice-versa. Daquele dia em diante, esperando alienar a sociedade ao nível adequado ao restabelecimento do convívio amorfo de antes, o NBL isolou Archibaldo, proibindo as pessoas de conversarem e reverberarem as suas palavras (de Archibaldo).
Começou, então, um novo período de escuridão.
Soprada por um ranger de dentes, uma nuvem pesada voltou a encobrir os céus e, anulada a resistência, sufocou a alegria própria da banda Cult, desanimando as iniciativas de resgatar Archibaldo dos porões da ignorância e de abrir, quem sabe, um novo caminho para a luz. Passaria muito tempo até que, mais uma vez, Archibaldo deixasse de ser apenas um velho louco que assustava crianças.
(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural