De louco se espera loucura

Assim que chegaram ao local, os senhores ordenaram aos servos que lhes construíssem as casas mais seguras e luxuosas possíveis e, assim estes o fizeram. Quanto a suas próprias moradias, fora-lhes permitido usarem folhas de coqueiros para se esconderem da chuva durante a noite, a fim de que não adoecessem e acabassem desfalcando a força de trabalho necessária para o desenvolvimento e aquisição da riqueza da região.

A princípio, aqueles serviçais sabiam que trabalhavam apenas para o bem-estar dos senhores. Conforme o tempo foi passando, algumas coisas mudaram, devido a algumas confusões que se deram entre os senhores, nas bebedeiras e orgias que realizavam, pois esse era o modo como levavam suas vidas. O elemento essencial dessas mudanças foi o fato de os senhores dizerem aos servos que, daquele tempo em diante, eles também seriam proprietários das terras e, consequentemente, usufruiriam de todos os bens adquiridos por meio de seus esforços.

Os servos continuaram trabalhando, agora animados por saberem que gozariam do fruto de seu trabalho. Ao final daquele ciclo, os senhores, após se reunirem para tratar de assuntos particulares, se apresentaram aos servos e relataram o quanto havia sido minguado o valor dos bens produzidos por eles. Todavia, os animaram dizendo que não ficassem tristes, porque todos estavam juntos no mesmo barco e, quando menos esperassem, a sorte grande lhes abriria seu inconfundível sorriso. Deram, ainda, a cada um dos servos uma tira de couro, dizendo ser uma das melhores iguarias e que faziam parte de seus próprios cardápios. Portanto, estes deviam misturar as tiras de couro, em pedaços, às gororobas que comiam, e veriam quanta sustança tinha naquela novidade.

Muito tempo se passou. Os filhos assumiram os lugares dos pais. Nenhuma mudança notável. Nas mansões, as festas, bebedeiras, orgias, brigas, tudo continuou. Quanto aos servos, permaneciam esperando as coisas melhorarem, para participarem do produto de seu trabalho. Os bons ventos, ainda não tinham soprado, era necessário seguir mastigando, todos os dias, as tiras de couro que recebiam. Esta era vital para eles, pois além de os alimentar, também era um grande entretenimento. Passavam o dia mastigando. Não viam as horas passarem, não percebiam a dureza da labuta, não pensavam em nada, era a melhor coisa que podiam ter, uma ótima distração.

Um filho de um dos senhores, nascido numa caverna, onde também nasceram e cresceram alguns outros, frutos de aventuras, dessas típicas dos coronéis. Um dia, resolveu sair com seus colegas e viverem entre os outros homens. Incrivelmente, era versado em todas as vadiagens da classe de seus genitores. Ao sair da caverna, não percebeu nada de diferente, era cego. Mas, para ele, como para seus colegas, tudo estava normal. Não chegou a desenvolver a fala. Tentava se comunicar fazendo uma espécie de barulho que ficava a meio caminho entre o palrar dos papagaios e o ganir dos cães. Nunca houve um especialista que pudesse explicar o barulho que ele emitia. Além disso, seu cérebro foi alvo de um doença raríssima (até hoje desconhecida da medicina), ocasionando a impossibilidade de um desenvolvimento intelectual.

Misteriosamente, esse ser tinha algo consigo que o tornava extremamente perigoso. Todos quantos lhe davam qualquer tipo de atenção eram infectados e, não só passavam a portar todas as suas características, como as transmitiam a quem quer que deles se aproximassem. Sabendo disso, os cientistas desenvolveram um medicamento que evitava o contágio, porém não tinha o poder de cura para quem já estivesse infectado. Aqueles, portanto, que ainda não tinham sido acometidos da síndrome, foram medicados e ficaram praticamente sem qualquer risco de contaminação. Infelizmente, para os demais, não se via esperança, não houve nenhuma pesquisa que vislumbrasse algo de animador nesse sentido. A situação foi tida como irreversível.

Apesar de todo o quadro doentio daquele ser, ele nunca se sentiu incomodado com sua condição, entendia ser aquilo, o normal. Tal constatação ficava cada vez mais clara para ele, à medida que percebia o enorme grupo que o imitava em tudo: gesticulava como ele, emitia barulho semelhante ao dele, expunha delírios lunáticos idênticos aos dele.

Ao notar aquele mar de seguidores que o acompanhava cega e incondicionalmente, como robôs agindo mecanicamente a um comando recebido, decidiu tornar-se o líder de todos da região. Aquela decisão causou um enorme alvoroço no povo, pois, os imunizados não cogitavam a ideia de a região ser dominada por tal demente. Por outro lado, os infectados o aclamavam numa histeria jamais vista, principalmente, pelo barulho indecifrável que emitiam. Era visível o fato de que, quanto mais estes se agitavam ovacionando o futuro líder, mais ficava evidente a degeneração de seus cérebros.

Candidatou-se, venceu o pleito e tornou-se o chefe da região. Não houve o que fazer, o número dos infectados era maior e eles o elegeram. No comando, começou a fazer um monte coisas esquisitas: tentava matar qualquer um que achasse feio, dava chutes violentos em quem o contrariasse, mas a principal aberração podia ser vista quando tentava se comunicar com todo o povo, abria a boca e vomitava uma enormidade de imundícies. Os imunizados, saíam sem entender o que tinha acontecido, enquanto os infectados, eufóricos, zurravam de forma ensurdecedora, numa espécie de transe.

Ainda estava no início de seus desmandos, quando surgiu, em outra região, um ser assassino misterioso que logo se reproduziu e transformou-se em milhões de outros, que começaram a torturar e matar, assustadoramente, a população. Esses seres eram imperceptíveis a olho nu, o que os tornavam extremamente perigosos. Migravam numa velocidade absurda. As armas dos homens não surtiam qualquer efeito sobre eles, com exceção de umas pouquíssimas que, usadas por um minúsculo grupo de elite, ajudavam alguns atingidos a se recuperarem. A única forma que se mostrava eficaz para a preservação das pessoas, era estas ficarem quietas em suas casas, enquanto o grupo de combate permanecia no fronte, atacando, como podiam, alguns daqueles seres para que não devorassem os muitos que estavam feridos e, às vezes, conseguiam ajudar um ou outro.

Quando os seres assassinos invadiram a região dominada pelo senhor PsicopaNero, o grupo de elite do local orientou a todos a ficarem em suas casas, exceto os que eram essenciais na força tarefa montada para o combate. Enquanto isso, PsicopaNero, não suportando a ideia de ter que passar aqueles dias sem fazer as suas festanças, suas bebedeiras e orgias, esbravejava com os combatentes, amaldiçoava as autoridades de todas as regiões, tinha constantes e intensas crises de vômitos, saía para as ruas e convocava o povo para o acompanharem. Os imunizados ignoravam seus chamamentos insanos, mas os infectados ficavam enlouquecidos.

PsicopaNero provocava uma confusão após outra. Não havia limites para as suas loucuras. Os seus colegas, que tinham suas festas bancadas à custa do trabalho do povaréu que agora se encontrava recluso, de quarentena, num distanciamento social adotado no combate à assolação instalada, estavam ensandecidos e o pressionavam para que mandasse o povo de volta a seus postos de trabalho, do contrário, suas festanças teriam de ser racionadas. A cada pressão dos colegas, PsicopaNero ia a público e vomitava aos montes diante de todos e sem qualquer constrangimento. Para ele, era normal, fazia parte do seu ser.

Durante um tempo, poucos foram mortos, visto que o mal estava razoavelmente sob controle em função da quarentena adotada. Porém, de tanto PsicopaNero chamar o povo, seus adoradores debandaram para as ruas, rompendo com todas as orientações das autoridades coordenadoras do combate. Assim que começavam a se sentirem confortáveis com a retomada da “normalidade” de suas vidas, aqueles seres impiedosos, de súbito, avançaram sobre as pessoas que se expuseram e começaram a rasgar suas carnes, asfixiá-las, matá-las, algumas com requintes de muita crueldade. Umas, mais ágeis, fugiam correndo para as suas habitações e, os seres aproveitando as oportunidades invadiam suas casas e matavam, não só os que tinham voltado às ruas, mas também quem permanecia em quarentena.

A situação fugiu ao controle. Ninguém conseguia ajuda onde quer que fosse, já que o grupo de combate encontrava-se bastante reduzido e sem recursos ante àquela situação desesperadora. A devastação atingira seu ponto máximo, milhares de mortos eram contabilizados diariamente. Numa daquelas manhãs, procuraram por PsicopaNero e não o encontraram. Nem ele, nem qualquer de seus familiares. Todos desapareceram sem deixarem pistas. Os seres seguiram seu curso, matando impiedosamente. Dizimaram uma parcela considerável da população e, só cessaram a matança cerca de dois anos depois, quando finalmente, veio socorro de outras regiões, com armas eficazes construídas especificamente para combatê-los.

A população, após todo o horror sofrido, retomava cautelosamente sua vida. Parecia mais atenta a tudo em sua volta. Comportava-se com mais consciência em relação a todos os aspectos da vida diária. Passou a trabalhar menos para poder aproveitar mais a vida, tinha ficado muito claro para todos que o excesso de trabalho só servia para adquirir coisas das quais não se necessitava e, só agia assim porque era pressionada pela indústria do “marketing”, que a fazia consumir por consumir, para cada vez mais enriquecer aqueles que já eram extremamente ricos.

Se houve algo de proveitoso em toda a situação, talvez tenha sido o aprendizado de que é muito perigoso ser um povo alienado; que trata irresponsavelmente aspectos fundamentais da vida social; que não hesita em conferir o direito de exercício de governo a alguém, declaradamente, louco. Pois, no momento de crise, tudo o que dele se pode esperar, é ainda mais loucura.