O Pássaro Preso
Em visita a um amigo de um amigo – nem tão amigo assim – vi-me tomado por denso tédio. A troca de palavras era como uma luta de esgrima entre dois amadores. Longe de ser uma conversa intrigante, ouvia-os retomar histórias do passado para requentar o fortuito encontro recente. Os desapontamentos transtornavam o ritmo dos diálogos já sofridos quando ambos revelavam a dureza da atual realidade.
Enquanto aquele relacionamento chocava-se e revolvia-se como ondas do mar contra pedras irredutíveis, eu apoiava o corpo sobre uma perna e depois na outra, até que os passos começassem a me levar para além do alcance daquelas vozes de ânimo estagnado.
Nos fundos, além da cozinha, havia um quintal pequeno e abarrotado. Objetos empilhados descreviam, de forma tão descosturada quanto a conversa deixada lá atrás, tentativas diversas e aparentemente frustradas de alguém que procurou dedicar-se a atividades sem profundeza. Bolas, varas de pesca, pranchas de bodyboard e de surfe, skate, aro de basquete, aeromodelo, colete à prova d’água, partes de equipamentos de rapel e... soltei o ar, sem vontade de ver o restante. Voltei-me decidido a interromper o reencontro sofrível e partir.
Até que o vi. Era um pássaro negro, menor que um corvo, porém maior que um sabiá. Seus olhos curiosos e alarmados me fitavam. Denunciavam o quanto indesejado eu era, além de invasor. Aproximei-me guardando ar, reservando oxigênio para alongar a intenção de conquista-lo. Seu tamanho não ameaçava, mas como eu desconhecia aves de qualquer tipo, confesso que senti medo. Estiquei meu braço, alonguei meu dedo. Eu queria tocá-lo. Senti dentro de mim um certo pavor que logo vi refletido nele também. Seu corpo comprimiu-se, seus olhos arregalaram-se, seu bico abriu-se. Contraí meu braço, segurei o ímpeto de provoca-lo. Vi-me no espelho dos seus olhos. Ele ofegava de tão indefeso, até que parou, relaxou. Fiz o mesmo por puro mimetismo. Olhei a gaiola pequena, mal tinha espaço para ele abrir as asas por inteiro. Na base, penas desagregadas dormiam e morriam, enterradas sob fezes. Algumas banhavam-se na água que servia para beber. Restos de frutas atraíam insetos, enquanto apodreciam nos cantos. Um furor repentino tomou conta de mim. Comecei a sentir raiva de seu dono, cruel a ponto de não perceber que uma ave precisa ser ave, e também de todas as pessoas que sentem-se no direito de aprisionar criaturas frágeis. Olhei para a porta de onde eu havia saído, disparando raios invisíveis e inaudíveis de xingamentos e acusações contra aquela pessoa que não concluía nada, mas que condenava um animal, cujo maior feito é voar, a um confinamento repulsivo. Aos poucos o ódio escorreu para fora de mim, empurrado por outro sentimento. Senti pena do pássaro. E, de novo, meus olhos se pregaram aos dele. Desejei abrir a gaiola e o faria se algo sinistro não tivesse me impedido. Ao fitar seus olhos, a luz que ilumina o mundo afora apagou-se. Algo de humano apossou-se dele e seus olhos começaram a me dizer algo. Aquele pássaro, de algum modo, estaria me convencendo a abrir a porta da gaiola, mas o fato de eu estar aos poucos me entregando, surtiu o efeito contrário. Eu o queria preso, pelo menos até compreender o que ele dizia. Não importava mais se a gaiola era pequena e se o bicho estava sofrendo sem poder esticar as asas. Eu, de forma arbitrária, o manteria ali. Sua liberdade tornou-se refém da curiosidade mórbida que me atiçava. Sem qualquer interesse naquele jogo, a ave apenas me olhava, ora com um olho, ora com o outro. Foi quando, por um instante, minha mente se apagou. Apossei-me de seus olhos e me vi, olhando-me. Eu havia sido transferido para a mente da ave. Via em redor e tudo era pequeno, aquelas posses, aquele lugar, o ar que o preenchia, tudo pequeno. Não pequeno de tamanho, mas de virtude. Vida nenhuma deveria esforçar-se tanto na tarefa de tornar-se desprezível. É quase certo que mesmo um ermitão poderia engrandecer sua mente e obter conhecimento da natureza, acumulando valor muito mais útil do que uma pessoa de espírito derrotado por diversas vezes.
O interior da gaiola me confortava. Era sujo, disso eu tinha certeza, mas a grade de arames me protegia da pequenez de fora, de ser parte daquele mundo raso de mentes sem liberdade. Senti um incômodo ao ver-me tão próximo. Eu era a ave, e a pessoa que eu representava fora da gaiola uma ameaça a seu cubículo, seu reino. Fui tomado por repulsa e aflição. Como eu era pobre de pensamento e raciocínio. Como eu era ínfimo sendo uma criatura que, embora capaz de viver como quisesse, condiciona os demais seres viventes em troca de um prazer fútil e artificial. Claramente eu não era o seu dono, mas representava sua índole.
– Gostou do Belo? – ouvi o dono do pássaro atrás de mim.
A ave pôs-se a entoar um canto alegre, segundo seu dono. Para mim era um lamuriar. Um hino de sofrimento e dor, cuja melodia buscava assegurar em suas asas a esperança de que a tal pequenez se diluísse um dia. De súbito, o pássaro bateu as asas, até então guardadas para um voo incerto. O movimento inesperado fez a gaiola cair e despedaçar-se no chão.
– Belo? Ele nunca fez isso antes!
Calei-me. Olhei para baixo e vi apenas uma mancha escura aninhada por arames de metal retorcidos. Seu dono retirou o belo pássaro preto com cuidado entre as mãos. A asa quebrada. Ele parecia ter certeza de que não mais a usaria. O dono aflito, deixou o pássaro sobre a máquina de lavar e correu em busca de curativos. Não precisava mais prendê-lo ou vigiá-lo. O amigo com quem eu vim surgiu para ajudar. Na ação eles encontravam entendimento. Quanto a mim, fiquei estático como o pássaro quando aprisionado. Assistia a tudo sem mover-me, paralisado pela ironia. Pois deitado sobre a máquina de lavar estava o pássaro. O que o detinha ali não era apenas a asa quebrada. Era também a pequenez do mundo que ele teria que enfrentar fora da gaiola. Pequenez esta que afligia-me desde sempre e, não fosse um pássaro preso, continuaria sendo meu mundo invisível ideal.
Posso afirmar com clareza que aquele momento exato, quando buscava alívio para o tédio nos fundos da casa, foi quando eu fugi da minha gaiola imaginária. Ali vi e senti o peso do mundo que me rodeia a ponto de me tocar com o olhar do pássaro preso.