Reminiscências Póstumas de um Pinheirinho
Ao longo destas memórias, você vai se fazer várias perguntas. Tais como:
a) Oxente! Como é que esse Pinheirinho tem consciência de quem é?
b) Vixe! Como é que ele sabe de onde veio?
c) Se ele é consciente e sabe suas origens, como é que ele não sabe quando nasceu, mas sabe quando foi plantado?
d) E o mais importante, como é que ele sabe que fez a passagem?
Essas perguntas introdutórias são necessárias, por uma simples razão. Afinal, tratamos aqui, de memórias póstumas, não? Ainda que de um Pinheirinho!
Então, vamos lá!
Não tenho a menor ideia de quando nasci. Mas, tenho a exata lembrança de quando fui plantado.
Como todo ser vivo, quando nasce, realmente não sei a data de quando eclodi de dentro da minha semente, e nem de quando emergi do útero de Gaia. Pensando bem... Na verdade, tive dois “nascimentos”. Eclosão e Emersão. Lembra..? No entanto, tenho a precisa lembrança da data do meu plantio.
Foi no primeiro dia do mês de Setembro do ano de dois e dezenove do Calendário Gregoriano. Neste dia, o Sol despontou radiante e sem nuvens.
Adendo: No nosso calendário, o Calendário Lunar, que é o que importa, fica difícil precisar, uma vez que ele remonta do início dos tempos. Continuemos...
Meu benfeitor, o Sr. Florêncio, abriu uma pequena cova no jardim instalado por ele, a poucos metros do canal que corta os fundos do Parque Parahyba 2, localizado no Bairro Jardim Oceania, da cidade de João Pessoa, Estado da Paraíba; rasgou o saquinho de cultivo da muda - no caso, EU! – , retirou os torrões de terra que me sustentavam e, com muito carinho, com a mão esquerda, apoiou as minhas minúsculas raízes no fundo da covinha; e, com a mão direita, misturou os torrões que me abrigavam com adubo orgânico, cevados por ele no Canteiro de Compostagem, e por fim, encheu a covinha, cobrindo minhas raízes até a metade do meu delgado caule.
Pronto! A partir da daí, estava apto a tornar-me uma Grevillea Robusta frondosa e altaneira, fornecendo sombra e abrigo.
Oooopa! Desculpem-me! Primeiro, me apresentei como Pinheirinho, no masculino; depois, descrevi-me como Grevillea Robusta, no feminino. Achou complicado? Não se preocupe, não! É que no Reino Vegetal, na identificação de membros de nossa espécie, isso é muito comum... Quer um exemplo? Veja só... Alguém diz: “O Ipê (masculino) é uma árvore (feminino). Simples, não?
E por falar em Reino, nem era preciso falar, mas é importante lembrar. Nos domínios de Gaia, existem, como todos sabem, três morfologias para classificar as “coisas” que o compõem, que para simplificação, foram denominadas de “Reinos”. Os Reinos: Vegetal, Animal e Mineral. EU, como você percebeu, pertenço ao Reino Vegetal.
Os membros de cada reino, pertencem a determinada família. Por exemplo: No reino vegetal tem a família das gramíneas, das rosas, das árvores, etc etc. No reino mineral tem a família das rochas, das areias, dos cristais, etc etc. No reino animal tem a família das abelhas, dos pássaros, das minhocas, etc etc etc.
No entanto, é justamente no Reino Animal, que as coisas se complicam. Explico:
Nesse Reino, tem um espécime “sue gêneris”, a família Hominidae, da ordem Primates e da espécie H. Sapiens ou Homo Sapiens. O vulgarmente conhecido: BICHO HOMEM.
Essa espécie, o Homo Sapiens, é expansionista, cruel e sanguinária. Senão, vejamos:
Para a expansão deles, esse animal derruba florestas, destrói campos e savanas; polui e aterra lagos e mares, desvia rios e derruba montanhas. São tão belicosos, que quando uma tribo se opõe a outra, trucidam-se cruelmente. E quando tribos diferentes, depois de um improvável armistício, conseguem conviver numa paz arranjada, para satisfazer a inesgotável sede de sangue, caçam e capturam outros animais, somente por esporte. Quando por quaisquer motivos não conseguem caçar para satisfazer a crueza deles, a espécie, simplesmente, por um prazer mórbido, elimina qualquer ser vivo que tenha a infelicidade de ficar na sua frente. E é nesse ponto que eu entro. É por esse motivo que você está lendo essas reminiscências póstumas.
Oooopa! Sua curiosidade aguçou, e uma pergunta inevitável se fez presente?
Certamente você estará se perguntando: “Que motivo será esse?”
Calma!
Antes, preciso fazer umas considerações a respeito do Bicho Homem.
Esse ser exótico, acredita, em diferentes graus, que é a imagem e semelhança do Criador. Imagem, até pode ser! Mas... Semelhança? Não creio!
Veja bem... Um Ser, Onisciente e Onipresente, jamais seria semelhante ao Bicho Homem. O Criador, é tão magnânimo, que, em Sua imensa sabedoria e bondade, dotou o Bicho Homem do Livre Arbítrio. Ao contrário de nós, demais seres vivos, que nascemos, cada um, com um único propósito. Existir, e reagir por instinto.
EU, por exemplo, nasci com um único propósito: Existir, e eventualmente, fornecer abrigo e sombra!
O Bicho Homem, não! O Livre Arbítrio o dota de raciocínio e análise crítica do seu habitat. Ele não existe apenas por existir. Ele não apenas reage, ele age! Ele tem a capacidade de criar, não apenas de destruir. Ele age de caso pensado. O Livre Arbítrio permite que ele seja ciente do mundo ao seu redor, de suas ações, para o bem e para o mal.
Aliás, a ciência, em conjunto com a senciência, característica inata do Bicho Homem; em tempos imemoriais, permitia que ele aceitasse a senciência dos vegetais. No entanto, a ironia de tudo, é que esse conhecimento da senciência vegetal, ficou esquecido por milênios; esse conhecimento ficou relegado apenas aos xamãs, pajés e merlins. Mas... Nem tudo está perdido; alguns exemplares modernos do Bicho Homem, atualmente, dedicam-se ao estudo da nossa senciência.
Chega! Assim... Desse jeito, estou à beira da autocomiseração e da autoindulgência. Portanto, voltemos lá atrás... Do motivo das minhas reminiscências.
Na família do Hominidae – desculpe, do Bicho Homem -, na verdade, existem alguns que são a semelhança do Criador. Esses raros exemplares, são dotados de extrema bondade, exalam amor e carinho pela natureza. São semelhantes ao Criador porque criam coisas belas... Como os jardins, por exemplo! São seres iluminados... Com desprendimento e abnegação, amor incondicional pela natureza, reconstroem o que seus irmãos destroem.
Eu tive a sorte de encontrar um desses exemplares, o Sr. Florêncio.
Quando o Bicho Homem, o Sr. Florêncio, pegou a minha muda no canteiro, eu senti a vibração da sua bondade, a aura do seu amor. Naquele momento, único, eu tive certeza da Onisciência do Criador, e da existência de Gaia, nossa mãe.
Aliás, vale aqui, uma pequena digressão. Senão, vejamos: “Se o mal existe, também existe o bem. Como contraponto; para equilibrar a balança!”
E é nesse sentido, que existem humanos como o Sr. Florêncio. Ou então, como um certo Bicho Homem que, em priscas eras, sabiamente, criou a Antropomorfia. O que nos permitiu, de vez em quando, dialogar com eles.
Pois é! Lá estou eu, novamente digredindo... Voltemos às reminiscências.
- o -
Lembro perfeitamente do dia 09.01.2020. Logicamente, estamos nos referindo ao Calendário Gregoriano. O dia estava sumindo, e a noite surgindo. Era a hora do lusco-fusco, a hora da transição entre a Luz e as Trevas. Era a hora do embate entre o Bem e o Mal.
O bem, o Sr. Florêncio, cansado da labuta no jardim, com um último olhar carinhoso para a sua criação, ajeitou no ombro magro, o ancinho e a enxada; numas das mãos, um balde e uma corda, usados para carregar água do canal para a rega diária. Depois, com um leve sorriso nos lábios, cumprimentou um conhecido que passava e caminhou em direção ao lar.
Ao mesmo tempo em que o Sr. Florêncio dobrava a esquina à direita do jardim, levando consigo sua Aura Positiva, verde esmeralda, que nos envolvia como uma redoma, deixando para trás, apenas uma fina camada para nos acalentar durante a noite; dobrava também, na esquina esquerda, no sentido no Colégio João Machado, caminhando pelo calçadão, em direção ao jardim, vinha um tipo de Hominidae sinistro, envolto numa Aura Negativa, escura, gélida. Aquela aura sinistra o precedia como uma névoa em vários metros. Muito antes que ele alcançasse o jardim, os pardais retardatários que ainda ciscavam uma semente ou outra, alçaram voo e fugiram para bem longe.
Quando a névoa começou a envolver o jardim, meus irmãos, de início, eriçaram as folhas, eu também. Depois, alguma coisa parecida com fogo nos atingiu. Nossas folhas foram murchando, e nossos galhos decaindo.
Logo em seguida tudo mudou.
Fomos envolvidos por um frio glacial. Quedamo-nos quietas. Foi como se toda a brisa marinha que nos acalentava, fosse retirada num átimo de segundo.
Esse tipo, todos os jardinianos já o conheciam. Fora ele que, na hora do lusco-fusco, poucos dias depois do meu plantio, mutilou os belíssimos girassóis plantados pelo Sr. Florêncio. Naquele dia fatídico, ele surgiu pela mesma esquina. Também sentimos o efeito nefasto de sua presença. Para nosso horror, aquele ser horripilante parou em frente aos indefesos girassóis, olhou para um lado, olhou para o outro; fixou os olhos na esquina onde o Sr. Florêncio tinha dobrado, talvez para certificar-se do afastamento definitivo dele, e quando percebeu que a rua estava deserta, covardemente despedaçou pétalas, arrancou folhas e triturou os tenros galhos das frágeis flores. Não satisfeito com sua brutalidade, aquele Hominidae odiento voltou sua atenção para nós, e seus olhos furibundos e cintilantes me olharam. Tremi meu caule!
Para nossa sorte, um grupo de jovens, barulhentos como maritacas, surgiu na esquina. Um deles, viu os girassóis mutilados aos pés do monstro e gritou:
“EI! O QUE VOCÊ ESTA FAZENDO...???”
O Asmodeus correu. Sumiu por semanas, até aparecer novamente no fatídico dia nove.
No dia seguinte, quando o Sr. Florêncio chegou e viu os caules, as flores, já murchas, e as sementes espalhadas pela calçada, todo o jardim sentiu a profunda tristeza que se abateu sobre ele. Suas mãos tremeram e seus ombros arquearam-se. Era mais um girassol destruído sobre o Sol da manhã.
E agora, no lusco-fusco do dia/noite, e com a ausência protetora do Sr. Florêncio, a aproximação ameaçadora do Asmodeus, tornava aquele momento, mais sinistro que nunca.
A sensação horripilante que nós, os jardinianos, sentíamos, era a mesma do dia do massacre da família de girassóis.
Era como um “déjà-vu”. A Aura Negativa precedendo o avanço inexorável do implacável demônio. Primeiro, o calor sufocante... Depois, o frio glacial, o eriçamento de nossas folhas e o decaimento de nossos galhos... O terror!
De repente, estávamos nós, indefesos diante do monstro. A maldade emanando dele como ondas... Nos envolvendo!
De início, ele tentou arrancar, pela raiz, um dos meus irmãos mais velhos. Ficou frustrado. Aquela grevillea estava bem enraizada, era forte.
Com esgar de ódio na boca fétida, tentou com outro Pinheirinho. O máximo que conseguiu foi arrancar algumas folhas e galhos.
Mais uma vez o Asmodeus rosnou de raiva, e a baba escorreu pelo queixo dele.
Em sua fúria cega, o monstro não percebia que, meus irmãos, ainda que arbustos, tinham raízes bem fincadas no solo. Seus caules já apresentavam grandes sucos raiados, denotando robustez e resistência.
Entre um olhar e outro para todos os lados da rua, perscrutando a presença de qualquer outro Hominidae, ele tentava, debalde, arrancar os arbustos dos Pinheirinhos.
Frustrado em suas tentativas insanas, ele parou, estático, na minha frente. Minhas folhas murcharam!
Com um sorriso sardônico... Mais até... Satânico! O Asmodeus, com as suas garras, envolveu o meu tenro e delicado caule, e com extrema violência, separou-me, para sempre, da minha amada Mãe Gaia.
Depois de seu ato atroz, o Asmodeus, sorrindo ferozmente, deu as costas à sua vítima da vez e saiu andando com as mãos nos bolsos, como se nada tivesse acontecido.
Eu fiquei lá... Aos pedaços! Espalhado pelos paralelepípedos da rua, na calçada e no meu antigo lar, o canteiro que me abrigava.
Alguns pardais que sempre voejavam pelo canteiro, ciscando e bicando minúsculas sementes de gramíneas, e um ou outro inseto ou verme desavisados, desolados com o que viram, pousaram no muro adjacente ao canteiro e ficaram chilreando intermitentemente. Quem passasse naquele momento, talvez pensasse que aqueles passarinhos faziam a algaravia natural de pássaros no cio.
Ledo engano!
Impotentes, com seus pios, curtas revoadas com retornos ao muro e batidas frenéticos de asas, ficaram ameaçando o Asmodeus que, indiferente ao chilreio dos pequeninos, não mudou o ritmo das passadas indolentes e despreocupadas.
Quando o Sol nasceu, seus raios iluminaram meus pedaços de folhas e galhos, moídos pelos pés dos transeuntes e pneus de carros.
Algum tempo depois, com o Sol um pouco acima dos prédios no horizonte, Seu Florêncio encontrou meus restos vegetais espalhados e esgarçados frente ao canteiro.
Condoído e tomado de profunda tristeza, o bom homem, com uma pequena pá e uma vassoura, juntou meus pedaços num monte informe de folhas, galhos, terra, areia e seixos, e com delicadeza, levou-me para o canteiro de compostagem, e deixou-me lá. Para maturar!
O Asmodeus, pobre alma atormentada, mal sabe ele, que ao arrancar-me do meu querido canteiro, pensando em matar-me; ao contrário, para seu pesar, embora não vá saber nunca, deu-me vidas múltiplas. Pois a minha essência, hoje, está integrada, pelas substâncias húmicas e nutritivas do adubo que alimenta as raízes que dão vida às roseiras, margaridas, pinheirinhos, trevos, abobrinhas, ipês, jasmins e mimosas, minhas irmãs jardinianas.
Pois é! Minha essência incorporou-se ao anima de Gaia.
João Pessoa/PB
Fev/2020.
Arigó
Ao longo destas memórias, você vai se fazer várias perguntas. Tais como:
a) Oxente! Como é que esse Pinheirinho tem consciência de quem é?
b) Vixe! Como é que ele sabe de onde veio?
c) Se ele é consciente e sabe suas origens, como é que ele não sabe quando nasceu, mas sabe quando foi plantado?
d) E o mais importante, como é que ele sabe que fez a passagem?
Essas perguntas introdutórias são necessárias, por uma simples razão. Afinal, tratamos aqui, de memórias póstumas, não? Ainda que de um Pinheirinho!
Então, vamos lá!
Não tenho a menor ideia de quando nasci. Mas, tenho a exata lembrança de quando fui plantado.
Como todo ser vivo, quando nasce, realmente não sei a data de quando eclodi de dentro da minha semente, e nem de quando emergi do útero de Gaia. Pensando bem... Na verdade, tive dois “nascimentos”. Eclosão e Emersão. Lembra..? No entanto, tenho a precisa lembrança da data do meu plantio.
Foi no primeiro dia do mês de Setembro do ano de dois e dezenove do Calendário Gregoriano. Neste dia, o Sol despontou radiante e sem nuvens.
Adendo: No nosso calendário, o Calendário Lunar, que é o que importa, fica difícil precisar, uma vez que ele remonta do início dos tempos. Continuemos...
Meu benfeitor, o Sr. Florêncio, abriu uma pequena cova no jardim instalado por ele, a poucos metros do canal que corta os fundos do Parque Parahyba 2, localizado no Bairro Jardim Oceania, da cidade de João Pessoa, Estado da Paraíba; rasgou o saquinho de cultivo da muda - no caso, EU! – , retirou os torrões de terra que me sustentavam e, com muito carinho, com a mão esquerda, apoiou as minhas minúsculas raízes no fundo da covinha; e, com a mão direita, misturou os torrões que me abrigavam com adubo orgânico, cevados por ele no Canteiro de Compostagem, e por fim, encheu a covinha, cobrindo minhas raízes até a metade do meu delgado caule.
Pronto! A partir da daí, estava apto a tornar-me uma Grevillea Robusta frondosa e altaneira, fornecendo sombra e abrigo.
Oooopa! Desculpem-me! Primeiro, me apresentei como Pinheirinho, no masculino; depois, descrevi-me como Grevillea Robusta, no feminino. Achou complicado? Não se preocupe, não! É que no Reino Vegetal, na identificação de membros de nossa espécie, isso é muito comum... Quer um exemplo? Veja só... Alguém diz: “O Ipê (masculino) é uma árvore (feminino). Simples, não?
E por falar em Reino, nem era preciso falar, mas é importante lembrar. Nos domínios de Gaia, existem, como todos sabem, três morfologias para classificar as “coisas” que o compõem, que para simplificação, foram denominadas de “Reinos”. Os Reinos: Vegetal, Animal e Mineral. EU, como você percebeu, pertenço ao Reino Vegetal.
Os membros de cada reino, pertencem a determinada família. Por exemplo: No reino vegetal tem a família das gramíneas, das rosas, das árvores, etc etc. No reino mineral tem a família das rochas, das areias, dos cristais, etc etc. No reino animal tem a família das abelhas, dos pássaros, das minhocas, etc etc etc.
No entanto, é justamente no Reino Animal, que as coisas se complicam. Explico:
Nesse Reino, tem um espécime “sue gêneris”, a família Hominidae, da ordem Primates e da espécie H. Sapiens ou Homo Sapiens. O vulgarmente conhecido: BICHO HOMEM.
Essa espécie, o Homo Sapiens, é expansionista, cruel e sanguinária. Senão, vejamos:
Para a expansão deles, esse animal derruba florestas, destrói campos e savanas; polui e aterra lagos e mares, desvia rios e derruba montanhas. São tão belicosos, que quando uma tribo se opõe a outra, trucidam-se cruelmente. E quando tribos diferentes, depois de um improvável armistício, conseguem conviver numa paz arranjada, para satisfazer a inesgotável sede de sangue, caçam e capturam outros animais, somente por esporte. Quando por quaisquer motivos não conseguem caçar para satisfazer a crueza deles, a espécie, simplesmente, por um prazer mórbido, elimina qualquer ser vivo que tenha a infelicidade de ficar na sua frente. E é nesse ponto que eu entro. É por esse motivo que você está lendo essas reminiscências póstumas.
Oooopa! Sua curiosidade aguçou, e uma pergunta inevitável se fez presente?
Certamente você estará se perguntando: “Que motivo será esse?”
Calma!
Antes, preciso fazer umas considerações a respeito do Bicho Homem.
Esse ser exótico, acredita, em diferentes graus, que é a imagem e semelhança do Criador. Imagem, até pode ser! Mas... Semelhança? Não creio!
Veja bem... Um Ser, Onisciente e Onipresente, jamais seria semelhante ao Bicho Homem. O Criador, é tão magnânimo, que, em Sua imensa sabedoria e bondade, dotou o Bicho Homem do Livre Arbítrio. Ao contrário de nós, demais seres vivos, que nascemos, cada um, com um único propósito. Existir, e reagir por instinto.
EU, por exemplo, nasci com um único propósito: Existir, e eventualmente, fornecer abrigo e sombra!
O Bicho Homem, não! O Livre Arbítrio o dota de raciocínio e análise crítica do seu habitat. Ele não existe apenas por existir. Ele não apenas reage, ele age! Ele tem a capacidade de criar, não apenas de destruir. Ele age de caso pensado. O Livre Arbítrio permite que ele seja ciente do mundo ao seu redor, de suas ações, para o bem e para o mal.
Aliás, a ciência, em conjunto com a senciência, característica inata do Bicho Homem; em tempos imemoriais, permitia que ele aceitasse a senciência dos vegetais. No entanto, a ironia de tudo, é que esse conhecimento da senciência vegetal, ficou esquecido por milênios; esse conhecimento ficou relegado apenas aos xamãs, pajés e merlins. Mas... Nem tudo está perdido; alguns exemplares modernos do Bicho Homem, atualmente, dedicam-se ao estudo da nossa senciência.
Chega! Assim... Desse jeito, estou à beira da autocomiseração e da autoindulgência. Portanto, voltemos lá atrás... Do motivo das minhas reminiscências.
Na família do Hominidae – desculpe, do Bicho Homem -, na verdade, existem alguns que são a semelhança do Criador. Esses raros exemplares, são dotados de extrema bondade, exalam amor e carinho pela natureza. São semelhantes ao Criador porque criam coisas belas... Como os jardins, por exemplo! São seres iluminados... Com desprendimento e abnegação, amor incondicional pela natureza, reconstroem o que seus irmãos destroem.
Eu tive a sorte de encontrar um desses exemplares, o Sr. Florêncio.
Quando o Bicho Homem, o Sr. Florêncio, pegou a minha muda no canteiro, eu senti a vibração da sua bondade, a aura do seu amor. Naquele momento, único, eu tive certeza da Onisciência do Criador, e da existência de Gaia, nossa mãe.
Aliás, vale aqui, uma pequena digressão. Senão, vejamos: “Se o mal existe, também existe o bem. Como contraponto; para equilibrar a balança!”
E é nesse sentido, que existem humanos como o Sr. Florêncio. Ou então, como um certo Bicho Homem que, em priscas eras, sabiamente, criou a Antropomorfia. O que nos permitiu, de vez em quando, dialogar com eles.
Pois é! Lá estou eu, novamente digredindo... Voltemos às reminiscências.
- o -
Lembro perfeitamente do dia 09.01.2020. Logicamente, estamos nos referindo ao Calendário Gregoriano. O dia estava sumindo, e a noite surgindo. Era a hora do lusco-fusco, a hora da transição entre a Luz e as Trevas. Era a hora do embate entre o Bem e o Mal.
O bem, o Sr. Florêncio, cansado da labuta no jardim, com um último olhar carinhoso para a sua criação, ajeitou no ombro magro, o ancinho e a enxada; numas das mãos, um balde e uma corda, usados para carregar água do canal para a rega diária. Depois, com um leve sorriso nos lábios, cumprimentou um conhecido que passava e caminhou em direção ao lar.
Ao mesmo tempo em que o Sr. Florêncio dobrava a esquina à direita do jardim, levando consigo sua Aura Positiva, verde esmeralda, que nos envolvia como uma redoma, deixando para trás, apenas uma fina camada para nos acalentar durante a noite; dobrava também, na esquina esquerda, no sentido no Colégio João Machado, caminhando pelo calçadão, em direção ao jardim, vinha um tipo de Hominidae sinistro, envolto numa Aura Negativa, escura, gélida. Aquela aura sinistra o precedia como uma névoa em vários metros. Muito antes que ele alcançasse o jardim, os pardais retardatários que ainda ciscavam uma semente ou outra, alçaram voo e fugiram para bem longe.
Quando a névoa começou a envolver o jardim, meus irmãos, de início, eriçaram as folhas, eu também. Depois, alguma coisa parecida com fogo nos atingiu. Nossas folhas foram murchando, e nossos galhos decaindo.
Logo em seguida tudo mudou.
Fomos envolvidos por um frio glacial. Quedamo-nos quietas. Foi como se toda a brisa marinha que nos acalentava, fosse retirada num átimo de segundo.
Esse tipo, todos os jardinianos já o conheciam. Fora ele que, na hora do lusco-fusco, poucos dias depois do meu plantio, mutilou os belíssimos girassóis plantados pelo Sr. Florêncio. Naquele dia fatídico, ele surgiu pela mesma esquina. Também sentimos o efeito nefasto de sua presença. Para nosso horror, aquele ser horripilante parou em frente aos indefesos girassóis, olhou para um lado, olhou para o outro; fixou os olhos na esquina onde o Sr. Florêncio tinha dobrado, talvez para certificar-se do afastamento definitivo dele, e quando percebeu que a rua estava deserta, covardemente despedaçou pétalas, arrancou folhas e triturou os tenros galhos das frágeis flores. Não satisfeito com sua brutalidade, aquele Hominidae odiento voltou sua atenção para nós, e seus olhos furibundos e cintilantes me olharam. Tremi meu caule!
Para nossa sorte, um grupo de jovens, barulhentos como maritacas, surgiu na esquina. Um deles, viu os girassóis mutilados aos pés do monstro e gritou:
“EI! O QUE VOCÊ ESTA FAZENDO...???”
O Asmodeus correu. Sumiu por semanas, até aparecer novamente no fatídico dia nove.
No dia seguinte, quando o Sr. Florêncio chegou e viu os caules, as flores, já murchas, e as sementes espalhadas pela calçada, todo o jardim sentiu a profunda tristeza que se abateu sobre ele. Suas mãos tremeram e seus ombros arquearam-se. Era mais um girassol destruído sobre o Sol da manhã.
E agora, no lusco-fusco do dia/noite, e com a ausência protetora do Sr. Florêncio, a aproximação ameaçadora do Asmodeus, tornava aquele momento, mais sinistro que nunca.
A sensação horripilante que nós, os jardinianos, sentíamos, era a mesma do dia do massacre da família de girassóis.
Era como um “déjà-vu”. A Aura Negativa precedendo o avanço inexorável do implacável demônio. Primeiro, o calor sufocante... Depois, o frio glacial, o eriçamento de nossas folhas e o decaimento de nossos galhos... O terror!
De repente, estávamos nós, indefesos diante do monstro. A maldade emanando dele como ondas... Nos envolvendo!
De início, ele tentou arrancar, pela raiz, um dos meus irmãos mais velhos. Ficou frustrado. Aquela grevillea estava bem enraizada, era forte.
Com esgar de ódio na boca fétida, tentou com outro Pinheirinho. O máximo que conseguiu foi arrancar algumas folhas e galhos.
Mais uma vez o Asmodeus rosnou de raiva, e a baba escorreu pelo queixo dele.
Em sua fúria cega, o monstro não percebia que, meus irmãos, ainda que arbustos, tinham raízes bem fincadas no solo. Seus caules já apresentavam grandes sucos raiados, denotando robustez e resistência.
Entre um olhar e outro para todos os lados da rua, perscrutando a presença de qualquer outro Hominidae, ele tentava, debalde, arrancar os arbustos dos Pinheirinhos.
Frustrado em suas tentativas insanas, ele parou, estático, na minha frente. Minhas folhas murcharam!
Com um sorriso sardônico... Mais até... Satânico! O Asmodeus, com as suas garras, envolveu o meu tenro e delicado caule, e com extrema violência, separou-me, para sempre, da minha amada Mãe Gaia.
Depois de seu ato atroz, o Asmodeus, sorrindo ferozmente, deu as costas à sua vítima da vez e saiu andando com as mãos nos bolsos, como se nada tivesse acontecido.
Eu fiquei lá... Aos pedaços! Espalhado pelos paralelepípedos da rua, na calçada e no meu antigo lar, o canteiro que me abrigava.
Alguns pardais que sempre voejavam pelo canteiro, ciscando e bicando minúsculas sementes de gramíneas, e um ou outro inseto ou verme desavisados, desolados com o que viram, pousaram no muro adjacente ao canteiro e ficaram chilreando intermitentemente. Quem passasse naquele momento, talvez pensasse que aqueles passarinhos faziam a algaravia natural de pássaros no cio.
Ledo engano!
Impotentes, com seus pios, curtas revoadas com retornos ao muro e batidas frenéticos de asas, ficaram ameaçando o Asmodeus que, indiferente ao chilreio dos pequeninos, não mudou o ritmo das passadas indolentes e despreocupadas.
- o –
Quando o Sol nasceu, seus raios iluminaram meus pedaços de folhas e galhos, moídos pelos pés dos transeuntes e pneus de carros.
Algum tempo depois, com o Sol um pouco acima dos prédios no horizonte, Seu Florêncio encontrou meus restos vegetais espalhados e esgarçados frente ao canteiro.
Condoído e tomado de profunda tristeza, o bom homem, com uma pequena pá e uma vassoura, juntou meus pedaços num monte informe de folhas, galhos, terra, areia e seixos, e com delicadeza, levou-me para o canteiro de compostagem, e deixou-me lá. Para maturar!
- o –
O Asmodeus, pobre alma atormentada, mal sabe ele, que ao arrancar-me do meu querido canteiro, pensando em matar-me; ao contrário, para seu pesar, embora não vá saber nunca, deu-me vidas múltiplas. Pois a minha essência, hoje, está integrada, pelas substâncias húmicas e nutritivas do adubo que alimenta as raízes que dão vida às roseiras, margaridas, pinheirinhos, trevos, abobrinhas, ipês, jasmins e mimosas, minhas irmãs jardinianas.
Pois é! Minha essência incorporou-se ao anima de Gaia.
João Pessoa/PB
Fev/2020.
Arigó