Um jogo de cartas

O REI:

Encontrei, perdida na floresta, uma linda donzela trajada de branco. Interrompi então a caçada ao cervo na qual estava engajado com meus homens, apaixonando-me à primeira vista.

“Quem é você?”, perguntei, antes de convidá-la a subir em meu cavalo.

“E se dissesse que não sei?”, a princípio replicou com outra pergunta, e bastante estranha.

“Se é assim, não sou eu quem deveria saber.”

“Na verdade, perdi a memória. Quando dei por mim, acordei entre estas árvores.”

“Este é o bosque que circunda meu castelo. Sou o rei de Dujon.”, trouxe-a portanto à minha morada, entregando-lhe o melhor dos aposentos afora o meu, despejando deste um dos meus vassalos, ignorando seus queixumes e enviando-o a um andar inferior. Passaram-se os dias e, a pedido da própria donzela, dei-lhe uma função, a de me servir, trazendo-me as roupas e refeições. Numa noite, contudo, não resisti, pedindo-lhe que ceasse comigo. Conversamos e brincamos, pena que seu passado não fosse acessível, até que com o primeiro beijo quebrei qualquer distância.

Não importavam mais as pretendentes com berço de ouro: me casaria com meu amor sem origem.

A RAINHA:

Consegui o que queria. O rei não pôde mais controlar seu desejo graças à minha arte! Sabia que a poção produziria a loucura se fosse colocada em excesso no vinho, por isso bastaram algumas gotas. Além disso, aproximava meu rosto, mexia nos cabelos, achegava-me com os seios, bem acolhidos em meu decote, ainda melhor pelas mãos dele. Nenhuma nobre me ameaçaria mais, e como rainha de Dujon não tinha poder para legislar ou promover guerras, só que mais do que isso possuía em mãos o coração daquele que podia realizar muito mais.

O DIABO:

A sacerdotisa pensou que saíra vitoriosa! Doce ilusão. Capturei e moldei a sombra desprezada, jogando-a na floresta, e as ambições ocultas não tardaram a se manifestar. É tolo quem acredita que pode vencer as paixões! E há ainda mais tolice e estupidez quando quem tenta o impossível é uma mulher. Veremos o que fará nossa rainha!

A SACERDOTISA:

A perplexidade tomou conta de minha alma quando, ao chegar em Dujon, todos me olhavam admirados e alguns se inclinavam, como se eu fosse uma rainha ou uma santa. Como nunca busquei o espiritual para a glória terrena, e sem entender de que maneira o vulgo podia compreender minha Realização, a menos que tivesse ido parar em outro mundo, resolvi me cobrir com um capuz. O maior susto, no entanto, se deu ao ver o rei que saía em seu passeio matinal com sua rainha; o espanto: ela era minha imagem no espelho, ainda que coroada, repleta de joias e revestida de púrpura, enquanto eu estava com os trajes mais simples. Compreendi por que me faziam reverências: certamente não pelo êxito espiritual.

Nunca ouvira falar de alguma irmã gêmea perdida, descobrindo a verdade ao fitar a sombra dela, que ao fundo, por baixo da tênue escuridão, ocultava o ardiloso Demônio, que ria de mim e dizia que eu não triunfara, apenas me dividira.

A rainha me fitou com brevidade, mas seu olhar era de uma ironia intensa e consciente.

Eu precisava salvar a vida do rei.

O LOUCO:

Por eu falar e enxergar demais, logo a rainha sugeriu (ou ordenou?) minha execução, me acusando de conspirar contra o rei. Cego, ele não se lembrava mais que o bobo é o único livre para dizer qualquer coisa.

No cárcere, enquanto aguardava a forca, a Inimiga veio até mim; ao menos foi o que pensei ao vê-la, e esperei pelos piores insultos e provocações, mas só podia ter ficado louco, surpreendido por uma tremenda doçura, apesar da voz ser a mesma: “Amigo, você precisa me ajudar a salvar o reino.”, as grades milagrosamente se abriram, e ela me explicou ser uma nobre sacerdotisa, que vencera as tentações do Diabo, mas este capturara sua sombra, que agora era a rainha de Dujon. Nenhuma outra história faria mais sentido.

A MORTE:

Tentei adverti-lo de diversas formas: fiz com que sonhasse todas as últimas noites com cemitérios e mausoléus de suntuosidade decrépita; enviei corvos e abutres para sobrevoar seu castelo; deixei alguns bois morrerem à sua porta, e as carcaças apodreceram. De nada adiantou. A rainha seduziu um venenoso barão e este contratou o melhor mercenário do reino para acertar com uma flecha precisa seu peito durante uma caçada. Teria sido o fim do ingênuo monarca se o bobo, que incrivelmente escapara da prisão alguns dias antes, não tivesse se posto à frente com um amplo escudo, no momento exato. O mercenário se viu obrigado a fugir, embora não fosse conseguir escapar de mim; eu, a dama cinzenta, o envolvi com meu manto: seu coração parou; e despencou do cavalo, que seguiu adiante sozinho.

A RODA DA FORTUNA:

Em meu novo giro, o destino do bufão fora transmutado. E foi recebido como herói em seu retorno a Dujon, até a rainha se desculpando publicamente pelo “mal-entendido” e pelas injustiças que cometera para com sua pessoa. Entrementes, na intimidade com o rei, tornava a envenená-lo, dizendo que fora o próprio bobo a contratar o falso assassino para depois se passar por herói; e devia ser certamente um bruxo, para escapar do cárcere sem qualquer explicação racional. O rei replicou que desta vez iria ponderar, a fim de não cometer nenhum erro. Começava a ter dúvidas sobre sua amada, enquanto o barão cruel, em sua carruagem, maquinava novos planos.

O MAGO:

Disse à minha irmã que estava procedendo com correção, porém precisava ser cuidadosa, e não necessitaria mais agir sozinha. Partimos juntos para Dujon, e nos encontramos com o bufão no beco de uma taverna. Tomei sua forma, e no castelo induzi no rei um sonambulismo, após fazê-lo adormecer por meio de chistes e cantos que não tinham como finalidade entreter. Não havia graça, e as melodias eram tortuosas. Fiz com que despertasse em frente ao quarto onde a rainha gemia com seu amante. Pegos em flagrante, o barão foi decapitado pela espada do monarca, mas a terrível feiticeira escapou, transformando-se em serpente alada, uma espécie de Melusina, e voando para a floresta. Estava ensandecida de ódio, seu voo cessando quando foi atraída de volta para o solo por minha irmã. Chegara o momento do confronto decisivo, entre as árvores da noite.

O JULGAMENTO:

Os anjos da sacerdotisa se chocaram com os demônios da sombra. Os três círculos que envolviam a primeira giravam no sentido horário, os dois da segunda no anti-horário. A terra tremeu. Os relâmpagos rasgaram o ar. No olho da tempestade, a decisão. Como terminaria? Tudo dependeria não do que se diz...

Marcello Salvaggio
Enviado por Marcello Salvaggio em 13/02/2020
Código do texto: T6865625
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