1124-O MATUTAR DE UM MATADOR

O MATUTAR DE UM MATADOR

O caminho se estendia pelo campo de capim seco e se perdia rumo ao horizonte. Era apenas uma trilha, marcada por sinais da passagem de homens e animais, desmanchando o solo compacto em fina poeira sobre a qual nada vicejava. Uma serpente branca. Imóvel, à espera da próxima vítima que lhe cairia em cima, morta de sede ou de fome.

De volta de mais uma empreitada Jesuino nada mais tem fazer senão matutar, cismar e recordar de sua vida, seus feitos e desfeitos. Não é dado a muito pensar, mas aquela pasmaceira, o mormaço, o sol quente e a cadencia ritmada de seu cavalo, o levam a desembrulhar memórias.

"Arre, égua, nem uma sombra, nem um filete d’água, nem um barranco onde encostar prá descansar o corpo. Isso aqui é mais quente que o inferno, é mais longe do que o lugar onde Judas perdeu as botas. Nem um fiapo de nuve prá esconder essa brasa de sor. "

Cavalgada longa. Vinha do litoral, estivera em Ilhéus, onde cumprira seu contrato com o capitão. Passava pela região mais inóspita que se podia imaginar. Norte de Minas. Não gostava dos caminhos conhecidos, percorridos por carros de bois em caravana de comércio ou por tropeiros. Vai que encontrasse alguém que pudesse saber de seus negócios, e então... nem é bom pensar. Mesmo quando se aproximava de uma cidade, passava ao longe. Ele sabia de sua fama que aumentava em sua vaidade inconsciente.

Comprava o que precisava nas biroscas das pequenas vilas e dormia escondido em locas e grotões, sob a luz das estrelas.

"Bão, esse foi meu urtimo serviço. Um favor que fiz pro capitão Bernardino. Agora paro, vou ficar cum minha nêga Bermira, assossegdo no meu cantinho. Chega dessa vida."

Sem querer, mas querendo, Jesuino ia e vinha em seus pensamentos. Ao mesmo tempo em que pensava no futuro, arrenegava sua profissão e vinham memórias de tempos tão antigos, que até pareciam empoeiradas.

Esta era a ultima empreitada, que tomara a peito por amizade do capitão, numa vingança de tempos passados.

Mais de vinte anos já fazia que a desgraceira acontecera na fazenda do Capitão Bernardino. Homem de posses gostava de ter do bom e do melhor. Comprava boas coisas para si, para a mulher, Cassiana, e para filha que se desabrochava em flor, numa bela moça. Laurinda devia ter uns dezesseis anos e não se dava conta sequer da sua formosura. Alta, cabelos negros longos que vinham até abaixo da cintura, grandes olhos negros como jabuticaba do mato, lábios vermelhos e uma boca cujo sorriso brilhava como se tivesse uma estrela em sua boca.

A fazenda era muito visitada por mascates. Sabiam da fama de bom comprador do capitão: tecidos, sapatos, perfumes e tudo o mais que lhe era apresentado pelos comerciantes ambulantes, o próspero fazendeiro comprava sem titubear.

Serapião Gambeta, um mascate judeu ou turco, era atirado. Trazia para o capitão, para dona Cassiana e para a jovem Laurinda, um carregamento especial em lombo de burro, direto da capital, distante mais de cinquenta léguas: duas malas cheias de produtos que sabia ser do agrado e ali deixava tudo, com bom lucro e mais a satisfação de lançar os olhares para a moça.

Vinha Serapião duas vezes por ano. No tempo das secas e na estação das águas. Enfrentava dificuldades em todas as viagens: sede e mosquitos e outros insetos que lhe picavam a carne, no verão, e enchentes dos rios e córregos que atravessavam a região e as terras do coronal, na época das chuvas.

Mas vinha. Era recebido com alegria por todos. Vendia as peças melhores para a família do capitão, e as quinquilharias de pouco valor para alguns agregados. Só os escravos nada compravam.

Ficava três, quatro dias na fazenda, era recebido com honras de visitante ilustre. Tinha jantares especiais e um bom quarto fresco para os pernoites. E as atenções de todos, principalmente os sorrisos de Laurinda, cujos maneios lhe afetavam um pouco. Coração disparado, respiração arfante. Não se atrevia, porém, a pensar em nada que o pudesse enredar com a moça, pois sabia do gênio do capitão. O destino da moça estava traçado, que era casar-se com um ou outro fazendeirão da região.

Porém, aconteceu e pronto!

Laurinda escondeu enquanto pode seus encontros furtivos com Serapião, que resultaram numa barriga cada vez mais comprometedora. Quando confessou à mãe o acontecido, Serapião já havia ido embora fazia meses.

Foi uma tragédia, com o capitão ameaçando matar a filha junto com o mascate, assim que ele fosse encontrado. O que não aconteceu, pois o ladino comerciante ambulante escafedeu-se e nunca mais deu sinal de vida. De nada adiantaram as buscas, as pistas, informações desconexas. Sumiu o mascate.

Jesuino, que conhecia o capitão e família, e que tinha por Laurinda certo pendor, participou das buscas com vontade de encontrar aquele que fizera com a moça o que ele mesmo gostaria de ter feito.

***

Anos se passaram. A intenção do capitão, de matar a filha e o mascate juntos, quando Serapião fosse encontrado, se esvanecera ante o fato de não haver sido encontrado o safado mascate. A menina gerada por Serapião e Laurinda e criada pela mãe e pela avó, já era por sua vez uma moça de uns vinte anos, linda como a mãe.

De repente, chegou notícia do mascate. O capitão ficou sabendo que estava estabelecido Bahia, num local na beira do mar, uma cidade chamada Ilhéus.

Convocou Jesuino.

— Jesuino, mandei lhe chamar a fim de a gente resolver aquela parada com o filho da puta do mascate que fez mal pra Laurinda.

— Onde que ele tá, capitão?

— Tá pras banda da Bahia. Numa cidade chamada Ilhéus, que fica na beira do mar. Cê num sabe onde é, mas tenho as informação procê chegar lá. Vai lá e mata esse cara. De vagar e com bastante sofrimento. Fala que tá cumprindo minha vingança, a vingança do capitão Bernardino.

Assim falando passou para Jesuino o que sabia sobre como chegar à longínqua cidade do litoral.

— Pode deixar, capitão. Considere o cabra sangrado, feita a vingança de vosmecê.

E foi. No lombo de seu cavalo Faísca, andou por montes, desertos, matos, florestas até chegar à tal de Ilhéus. Cidade grande, mas não foi difícil encontrar o homem que procurava. Ele nem se dera o trabalho de mudar de nome. O bar do Serapião era na beirada da praia, numa casa que era ao mesmo tempo o bar e a sua morada. Isolada.

Com poucos dias de observação, notou que o homem morava sozinho, que ia dormir tarde em função do movimento do bar, acordava pelo meio dia, quando começava a lida do dia.

Não foi a morte que o capitão encomendara. Foi, sim, uma tocaia noturna, quando na madrugada escura, Serapião fechou o bar e preparava-se par a dormir.

A surpresa do ataque não deu oportunidade de uma defesa. O matador sangrou o comerciante pelo pescoço e o deixou sobre o leito. Morto.

Jesuino, a quem não faltava uma dose de humor negro, pensou:

"Agora, posso parar. Já me chamam de Jesuino Mata Doze, agora podem me chamar de Jesuino Mata Treze".

***

A tarde já ia a meio. Nuvens adensavam-se ao leste, vindas do mar, prenhes de umidade e promessa de chuva abundante.

"Mardito calor! Tô que num aguento mais de sede. Tomara que esta chuva que tá armando chegue logo prá refrescá e matá minha sede".

Jesuino desviou a montaria para a direita, onde via, além, um verde rasteiro e uma isolada árvore copada muito alta, destacando-se contra o horizonte de azul escuro.

"Um pequizeiro. Talvez encontre algum poço ou corguinho".

Faísca mantinha o passo, nem muito depressa nem muito devagar. Acostumado com longas horas em cima da sela, Jesuino caiu numa modorra.

O estrondo de um trovão o trouxe de volta à realidade. O céu estava escuro, coberto pelas nuvens de tempestade que se formava. O cavalo, na cadência que lhe era própria havia conduzido o cavaleiro para perto da alta e frondosa árvore.

"Menos mal. Debaixo desta árvore estendo minha capa e armo meu bivaque e inda aparo água prá beber".

Apeou, tirou a sela e deixou o cansado animal pastar a relva crestada. Pingos grossos começaram a cair antes que mesmo que armasse seu abrigo. Raios coriscavam pelo céu, trovões enchiam o ar de ribombos. O vento dificultava a armação de um abrigo com a capa de montaria.

A figura de Jesuino, brigando contra o vento, puxando sua capa, ficou nítida e brilhante, quando um raio atingiu o topo da alta e solitária árvore, fendendo-a de alto a baixo.

Num momento tronco, galhos, cavalo e cavaleiro tornaram-se figuras ígneas, e em seguida, carbonizadas, negros restos de um matador e sua montaria.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 24 de agosto de 2019

Conto # 1124 da Séria INFINITAS HISTÓRIAS.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/02/2020
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