A HISTÓRIA DOS TRÊS PATOS ANDRÓGENOS

Quando se quer contar uma história como essa, ao mesmo tempo tão edificante e fantasista,

é preciso primeiro situá-la.

Naquele dia comecei a compor uma paisagem de primavera.

Num terreno fértil, ligeiramente ondulado, distribui campos, um prado, alguns bosques, escolhendo bem os meus verdes.

Algumas trilhas sinuosas e um caminho pedregoso conduzindo à aldeia que ficava bem próxima.

Duas vacas pacatas, um cachorrinho latindo sem razão, um cavalo de arado, pardais, formigas, minhocas, enfim todos os acessórios clássicos, dosados e repartidos com muito cuidado.

Depois, alguns camponeses.

Para evitar as críticas de escritores populistas que logo tratam a gente de “ agreste” ou “ bucólico “, eu coloquei bem longe, no fundo, uma usina de qualquer coisa com uma chaminé , e uma sirene que se ouvia claramente quatro vezes ao dia.

Enfrentei alguma dificuldade com minhas nuvens (questão de densidade) mas, “com perseverança, dizia Brahms, tudo se resolve” e consegui finalmente dispô-las de maneira bem graciosa.

Tudo ia bem.

Uma ligeira brisa do sudoeste fez logo sentir que era primavera mesmo.

A seiva se expandia pelas plantas, pássaros e insetos se movimentavam diligentes cada um no seu setor.

Quanto aos camponeses, deixados a si mesmos sob a influência do meio, se comportavam como perfeitos camponeses.

Eu esfregava as mãos: a paisagem de primavera era muito boa.

Comecei a passear nela.

Todo convencido, eu aspirava com satisfação o ar notavelmente fresco e leve.

Mas pouco a pouco, essa singular pureza me parecia suspeita.

Mais eu andava, mais eu respirava, mais me convencia que este frescor insólito encobria alguma irregularidade.

Por coincidência, ouvi falar de um estrangeiro, grande amador de paisagens - um verdadeiro “ connaisseur”- que andava por lá.

Fui procurá-lo e expus pra ele as minhas dúvidas.

- vamos ver, decidiu o homem.

Examinou friamente o conjunto, deu alguns passos franzindo o nariz, e protegendo a boca com uma das mãos me confiou zombeteiro:

- Micróbios, bactérias, rapaz; o seu ar está sofrendo de absoluta carência de “bactérias”.

- Bom, retorqui, eu as porei.

- Onde irá encontra-las ? ironizou o personagem.

- Em Viena!

Porque, bem entendido, não basta lançar ao acaso quaisquer bactérias no ar!

Um pequeno erro de dosagem, e os seus insetos estouram, os animais se cobrem de lepra, os camponeses emigram para Canadá.

Mas eu sabia onde encontrar um especialista, aquele que nós costumamos chamar de “o Doutor”.

Minha decisão era firme: quando a gente se propõe a contar uma história ao mesmo tempo tão realista e tão fantasiosa, como aquela dos Três Patos Andrógenos, não se deve medir nem penas nem esforços.

Embarcaria na mesma noite para Viena, mas antes, na hora o crepúsculo, armei minha cara paisagem, utilizando-me do tradicional método de Bombast Paracelsus: primeiramente a gente “fixa” os elementos pelo processo dito “dos orthostenos diferados” e, basta adormecer mentalmente a paisagem a cada noite, e acordá-la do mesmo modo pela manhã. Os elementos tratados desta forma, dormem um sono quase natural, mantendo intacta a sua vitalidade.

Há quem considera este método como exageradamente empírico. Quanto a mim. Sempre o utilizei com vantagem: porque iria mudar agora?

Chegando a Viena, (uma neblina triste sombreava as ruas), me dirigi de carruagem até a Graf Poddelstrasse.

No numero 17, depois de alguns instantes de espera, a porta se abriu lentamente diante de um homem ruivo, de chinelos, segurando um arco de violoncelo.

Interrogava-me pelo olhar com um ar enfastiado.

- Venho falar com o Doutor, o Doutor Friedrich Knieps.

- O Doutor? -disse o homem- mas, ora, você não sabe? mas, ora, o Doutor está ausente.

- Ausente? Vai demorar?

- Mas, ora, o Doutor está no Brasil, prisioneiro no Brasil.

- Prisioneiro? No Brasil?

- Mas sim, ora, - e sua voz arrastada tinha aquele tom aborrecido de quem repete pela centésima vez a mesma explicação - , foi depois o caso do circo, (*) O “ Grande Circo Místico”, lembra-se? então, desde aquela época Jorge de Lima mantém o Doutor como prisioneiro.

- Jorge de Lima? ele? ... e o vosso Cônsul lá?

- O Cônsul... mas, ora, o Cônsul ... – e ele batia o arco contra o joelho como alguém que sabe bem o que deve pensar.

Afastei-me um tano desanimado, mas lembrando-me dos episódios tão coloridos, tão vivos e variados que A História dos Três Patos Andrógenos iria se desenrolar no seio da minha paisagem, reagi prontamente: eu iria lá, eu libertaria Knieps, custasse o que custasse.

A viagem decorreu bastante monótona. A minha única preocupação era de calcular cada dia, em razão da mudança de longitude, a hora de adormecer e de acordar a minha paisagem, para que os elementos fixados pelo método dos orthostenos diferados, continuassem a viver de acordo com a ua localização geográfica primitiva.

Chegando ao Rio, fui sem tardar procurar Jorge.

(*) “ O Grane Circo Místico” in “ A Túnica Inconsútil” de Jorge de Lima – Edit. José Olmpio. Rio de Janeiro 1940

Encontravam-se na saleta de espera, diversos personagens esquisitos e silenciosos.

Ele, eu logo o reconheci, bem que nós não tivéssemos mais nos encontrado desde a Dieta de Worms, e ali ele circulava, passando de um cômodo a outro, sorridente e enigmático.

Aproximei-me e cochichei ao seu ouvido:

-Jorge, eu vim buscar Knieps.

- Impraticável, declarou Jorge, com sua voz macia, Knieps vai morrer: A glória de Sion o exige.

O telefone tocava sem parar:

- É o Murilo Mendes, explicou Jorge, desde hoje cedo Le insiste para que o Doutor seja poupado sob o pretexto que Knieps nasceu em Salzburg, mas é absolutamente impossível.

Continuou sonhador:

- Um grande poeta, Murilo Mendes, grande poeta mesmo..., infelizmente ele se embriaga todos os dias das cinco às sete, ele se empanturra de Mozart puro. Acabará mal.

Venha, siga-me.

Sobre um divã desbotado na cor laranja, Knieps, vestido de um fraque escuro de modelo antigo, estava estendido, imóvel.

- Já? Perguntei...

-Não, disse Jorge, clorofórmio, mas...

Ele apontou um cavalete sustentando uma grande tela, de uma textura incomum. E como eu me aproximava, avisou Jorge:

- Pode olhar, mas seja prudente, não vai tocar.

Uma espécie de grande bandeja de zinco, formando um fundo emoldurado por um rebordo de poucos centímetros de espessura, continha uma pasta esbranquiçada e granulada, figurando a “tela”.

Observando atentamente, pude constatar que as partículas da superfície se moviam como se um manear interno, vagaroso e continuo, as deslocasse, mas mantendo-as sempre dentro de um mesmo plano.

Um homem entrou, coberto com um avental branco e depôs ma paleta e outros acessórios de pintor num banquinho ao lado da tela. Perguntou:

- Tudo em ordem?

- Sim, concordou Jorge, podemos começar.

O homem de avental manobrou o cavalete aumentando a inclinação e juntos levantaram Knieps delicadamente, e o depuseram encostado à tela. Depois de poucos instantes, consultando-se pelo olhar, julgaram que Knieps aderira suficientemente, e enquanto o homem reerguia pouco a pouco o cavalete, Jorge recuou, piscando as pálpebras, pra melhor apreciar o efeito. Reajustou rapidamente uma gola um pouco amarrotada do fraque e inseriu um livro na mão de Knieps (era o “Vitriolo dos Anjos” de Marie Nolsen).

Comecei a entender: as partículas, como vivas, da pasta sugavam com regularidade as células da roupa, em seguida do corpo de Knieps, e o movimento interno as afastava logo, trazendo outras que continuavam a silenciosa tarefa.

A metade do corpo, em corte longitudinal, já fora absorvida e a frente se destacava em alo relevo.

- Cuidado, resmungou o home de avental, chegou o momento de apagar.

- Sim, explicou Jorge num tom meditativo, a escuridão é indispensável para que as partículas brancas possam adquirir e conservar a coloração da matéria que elas absorvem...

Na escuridão um cantador escandia: “ a mor-te-de-Knieps-a-mor-te-de ...”

Ao fim de uma dezena de minutos, Jorge reascendeu as luzes e concluiu

- Tá perfeito!

Tudo era agora reduzido a um só plano, e as estranhas partículas, como saciadas, se maninham imóveis, coloridas à semelhança da superfície da massa absorvida.

O homem de avental se apressou, segurando a paleta e pincéis.Em volta da silueta rígida do fraque, , pincelou um fundo, retocou uma dobra deselegante da gravata, e ... pintou olhos sobre as pálpebras fechadas de Knieps.

- Aqui está, concluiu, agora o verniz e a gente fica tranquilo: é só assinar.

Alguns dias depois eu passeava muito abatido.

Li num diário:”O Museu de Belas Artes qcaba de adquirir o retrato do Dr.Friederich Knieps, Médico de Câmara de S.M. a Imperatriz Maria Tereza, obra recente do pintor Arpad Szenes”

Dominado pelo desânimo, eu tinha descuidado da hora do adormecer da minha querida paisagem, e a noite, a grande noite fria do Norte já devia tê-la arrastado.

Aí eu compreendi que não seria durante “esta” vida que me seria dado contar aos homens, a história tão sensual, e no entanto tão moralista, dos Três Patos Andrógenos.

IMPORTANTE P.S.

Fui informado de que certas pessoas tendiam a considerar como fantasista a morte de Knieps. No entanto indo ao Museu de Belas Artes do Rio, veja o retrato de Knieps e o livro que ele segura na mão esquerda. Qualquer um sabe que, desde aquela época (*) o “ Vitriolo os Anjos” tinha deixado de figurar na biblioteca de Jorge.

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(*) 1944 N.do Ed.

Nota do autor: O nomes aqui citados são de inteira irresponsabilidade dos pais dos mesmos, e qualquer semelhança com alguém que você conhece não é nenhuma “mera coincidência”.

Jaak Bosmans

(d’àpres la veritée de mon père à 1958)