Histórias de carne e alma - O chamado


Clarisse era vocacionada das irmãs de São Francisco. Todos a tinham por bem encaminhada na vida religiosa. Moça certa. Morena. O corpo nem insinuante. Praticamente santo já santificado. Magra e miúda. Sorriso pronto e olhos seu tanto acesos. A alegria esparramada pelo rosto inteiro.
O que ninguém suspeitasse é que, sob a capa de se mostrar no dia-a-dia, a moça fraquejava na vocação. Não tinha fé completa nos votos que sustentava há três anos. Havia em si um formigamento, apontando caminho inverso. Precisava ter certeza. Buscar o limite do corpo e da mente.
Decidiu, por tal, viajar, de férias, ao desconhecido. Lugar nunca visitado, parentes nenhuns. Conhecida, de longe, apenas, Cícera, que, por pouco mais de ano, fora colega de estudo e vocação. Lugar perfeito para, em enredo ou desenredo, descobrir caminho, sem vigília de pai ou mãe.
Estes estranharam a decisão. Mas se resignaram-se em confiança, com recomendações de zelo. A mãe, pesarosa, ajudava na mala. Adivinhava as dúvidas da filha e imaginava as intenções da viagem. Rememorava a vida de Clarisse e buscava explicação.
Aos vinte e dois anos, Clarisse ainda lembrava a criança vivaz, de fácil comunicação. A adolescência sem grandes paixões ou desacertos. Desde cedo, a intenção de vida religiosa. Alegria reticente da família. Tudo podia ser. Com dezenove, entrara para a Casa das Irmãs, levando histórico de dois ensaiados namoro. Arremedo só. E a vontade de se dar ao serviço dos pobres.
De fato, o pai nem opinou. Aceitou a decisão. Preocupação a menos. Criar menina-mulher é custoso. A perseguição é grande.
Na fazenda, esperava-a, Cícera, a amiga e confidente, quando juntas em noviciado.
A moça extasiou-se na maravilha do escolhido e recôndito lugar. Cada vez que estendia o olhar em direção que fosse descobria inimaginadas surpresas.
Semitransparentes, as piabinhas, olhos e boca tão quase. Em ondas fugidias, ao comando das conchas das mãos sedentas de água e de amor. Sorvendo em grandes goles a transluz absoluta da cacimba, um tanto faz de conta.
Clarisse refletia: O que é uma cacimba? Mais que depósito d’água, é lugar abençoado e de pureza absoluta. A argila que filtra e refresca a água cristalina arbustos no entorno por pouco que a escondendo. Chegava a ser pecado tocar, sem pudor, o seu recato.
Os coqueiros em fila, no farfalho da brisa morna da tarde, entre mil pontiagudos espinhos, ofereciam o ouro dos cachos recém-abertos em flor e perfume.
Os pequizeiros tortuosos, plenos de mistérios de-além, assombrosos no indefinido da noite. De manhã, com o beijo do sol, revestiam-se em verdes grandes folhas e se e, em pouco se cobririam em delicadas, amarelas e perfumosas flores.
Os canaviais, em escala, se esparramavam nas encostas. Mais exuberantes, nas margens do córrego, se estendiam, mais ralos, até o sopé do morro.
Passaram-se dias, e Clarisse entrevivia novas sensações a cada passo. Saturava-se de natureza do nascer ao pôr do sol.
Sabia, intimamente, entretanto, que sonhado era mesmo o contato com gente. A rigor, algum rapaz que lhe despertasse atenção. Vários havia por ali, e um destacou-se de pronto. Francis, irmão de Cícera.
Nas várias andanças pelos infindáveis recantos, media com cautela os avanços e retrocessos das conversas e desconversas.
As palavras, por vezes, resolutas; em outras, relutantes, tomavam caminho oposto do corpo que se abria suave em oferenda, quase. Sentia secreto desejo de ser tocada pelo rapaz. Embora tênue sombra de culpa cobrisse a intenção.
Francis, tímido de costume, não se dava a longos colóquios, nem mesmo se ria à vontade. Com a moça, então, mais se mostrava fechado, falava o sério, sem brincadeiras.
Rapaz criado em fazenda. Prático com os serviços de rotina. Lidava desenvolto com os animais. Burros teimosos, cavalos enluados, bois traiçoeiros, vacas chifradeiras. Não achava empecilho por ali. Nadava bem, mergulhava como poucos; capaz de passar o dia inteiro na sela em transporte de boiada.
Por dois anos e pouco, pudera frequentar a sala de aula, escola precária no povoado vizinho. Até que aprendera bastante, em vista do tempo e da limitação de recursos. Livro em casa era coisa rara. Um havia de que se encantava. Ficava horas a fio decifrando as histórias. Eram lendas, histórias folclóricas, invencionices do povo. Assombrações, mula-sem-cabeça, lobisomem. Moças que se deitavam com padres e rapazes que nutriam desejos pela carne escondida nos hábitos das Irmãs de Caridade. Os castigos eram terríveis. As moças viravam mula assombrada e os rapazes, infelizes, uivavam em noites de lua.
Cismava dos modos da moça. Tão fina, tão sabida nas palavras. De princípio, mostrara-se cuidadosa, pouco falante, porém logo, com a convivência, foi ficando mais solta e, em pouco, sorria sem economizar. Os olhos demostravam brilho renovado. E justo naquele riso farto e no olhar buliçoso que Francis pensava demorado.
Não conhecia muitas garotas. Menos ainda de convivência, mas sabia, sentia que aquela era de todo diferente. A intenção brotava nas conversas, às vezes, mas, sobretudo, se denunciava no jeito de rir e olhar. Parece que está pendendo pro meu lado. Pensava e se arrependia. Livrai-me Deus de desencaminhar noiva de Cristo. Moça pura quase santa. Deus tal não permita!
Durou duas semanas aquele jogo. Clarisse, a cada encontro, investia mais e mais na aproximação. Em cada detalhe, preparava-se para o incerto. Escolhia roupas da amiga que as suas eram demais recatadas, combinava perfume, reinventava penteados. Acendiam-se os lábios em rubro tom. Ninguém ligava importância aos atos da moça. Certo que seriam caprichos de moça represada em convento. Talvez que a cabeça nem funcionasse bem. Que a deixassem, à larga, à vontade para o que quisesse.
Cícera foi a única que desvelou a completa intenção de Clarisse. Pensou em intervir, mas, com muxoxo, foi cuidar de seus afazeres.
A noviça, a cada tempo, inventava desculpa de estar junto ao rapaz. Beber leite no curral. Buscar verduras na horta. Visitar o galinheiro, colher jenipapo. Partir coquinhos para comer castanhas, pescar no açude. Por mais de semana os pretextos se sucederam em ordem e duração variadas. Até que o rumo novo se abriu para eles.
Após o almoço, depois de ajudar no arranjo da cozinha, Clarisse, incomodada pelo calor, seguiu o exemplo dos de casa e foi tirar cochilo. O sol intenso tremeluzia na copa das árvores. O ar parado. Deitou-se, mas, em pouco, dirigiu-se à janela e ficou olhando o paradeiro. Nem os passarinhos arriscavam-se. Solitária, a fogo-apagou fadigava seu canto sufocante; inquieta galinha cacarejava em busca de ninho para o inédito ovo: a natureza pontual que nem relógio.
Francis no frescor da varanda, cismava. Pensava em Clarisse. Até que ele era desenvolto no trato com as mulheres. Nada de muitas intimidades, mas experiências de rabicho na fazenda e nos arredores. Não que fosse galã, modelo de televisão ou artista de filme. Longe disso. Achava-se até meio sem jeito. Mas algo nele fisgava as moças. Talvez a atenção que dispensava. A disposição de conversar. Na verdade, mais de ouvir. E sempre tinha umas palavras que agradavam. Não tivera ainda namoro firme. Pensava em cavar pé-de-meia para não misturar as coisas. Achava errado empatar tempo de filha dos outros.
Com Clarisse, ficara grilado. Não sabia lidar com moça assim adiantada nos atos. E se fosse moça perdida. E se a história dos votos fosse conversa? Não queria fazer papel de bobo. Pensou em se aconselhar com Cícera. Ela tudo soubesse. Porém, achou complicado. Podia gerar confusão. Decidiu guardar só para si.
Na mesa da janta, bateu com o olho na moça. Ela toda tranquila, sem sombra de preocupação. Ninguém de certo nem reparava na agonia dele. Procurava controle para não se denunciar enviesado pensamento. Pouco comeu, menos falou; só coisas sem importância. Cícera apenas atenta.
- É, Clarisse, o clima te fez bem. ‘Tá comilona. Parece até que engordou.
- Vire essa boca, menina! Não quero nem posso. Perco minhas roupas. Estou pensando mesmo em voltar. Coisas para resolver. Esses dias já foram o bastante.
- Que nada! Daqui não sai antes dos trinta. Não foi o que combinamos? Vai quietando o facho. Trata de aproveitar. Depois de amanhã, tem festa na casa da Dondinha, minha prima. Zeca vai pedi-la em casamento.
- Bom para ela, que encontra destino. Difícil dar sequência na vida. Tantos caminhos, dúvidas é que não faltam.
- Bem fez você que escolheu. Já eu nem sei o que fazer. Nem parei para pensar. Sair daqui é custoso. Mãe adoentada, pai nos nervos. Nem ver de deixá-los à mercê.
A conversa se alongava. Na mesa os três. Francis na escuta, fazendo que nem prestava atenção. O certo é que sorvia com avidez cada palavra das duas. Buscava prova de entender o que ocorria. Decisão que tomasse seria bem calculada para não complicar. Temia um bololô.
Levantou-se da mesa e foi à janela. Semi-escurecido lá fora. Ficou um tempo pululando o olhar pela paisagem conhecida. Percebia nas silhuetas tudo que lhe era familiar. No recorte do céu piscando em estrelas, a pastaria, as árvores mais antigas, sobressaídas, os mourões da porteira de entrada. Por minutos, ficou paralisado na paisagem. Nem mais ouviu as meninas. Talvez que parassem com o assunto.
Logo, o lento clarão se insinuava além. Em pouco, veio aquele luão redondo de inundar tudo. Lembrou da proposta de Clarisse e o coração acelerou. Sentiu nó na garganta. Seguiu para dentro. No quarto, tencionava encontrar coisa que pudesse ajudar no refresco das ideias.
Clarisse e Cícera tiravam a mesa e, na cozinha, sempre de prosa, davam uma ajeitada no vasilhame. Tiravam o grosso. O serviço completo seria de manhã. Era o uso.
Após, sentaram-se na varanda, em observação. A lua clara espalhava respingos de prata. Clarisse, em curto silêncio, lembrou-se da intenção. Será quê? Talvez fosse doideira. De qualquer forma, não desistia.
Cícera nem sonhava. Tocava em outras conversas e a noite adiantava além das nove. Um bocejo e a lembrança do dia pesado que tivera. Levantou-se num espreguiço e revelou vontade de se recolher.
Passaram aos preparos para o sono. Em breve, as duas sob os lençóis na semiescuridão do quarto, ainda cochichavam risinhos de duas parecidas adolescentes.
Dado o último boa-noite, Clarisse ficou em meditação, repassando o dia tão cheio. E Francis, no quarto contíguo, teria já adormecido? Talvez que revirasse na cama. Ou será que esperasse pela hora oportuna?
A quietude lá fora. Interrupção do silêncio apenas nos latidos espaçados de cachorros ou pios agourentos de corujas, pelos arredores, em busca de inseto ou rato.
Sentia a lua, pelo brilho vazado nas frestas da janela. Um ar gostoso começava tomar conta.
Sentiu-se incomodada. De certo, que exagerara na comida. Pensava em Francis. Riu leve e soltou um suspiro. Os cachorros enchiam a noite em descompassada orquestra. Um galo insone cantou mais cedo. Nem meia-noite.
Lentamente, desvencilhou-se da manta e deslizou-se pelo quarto. Direção da porta, desculpa de ir à cozinha tomar água. Cuidado extremo para não acordar eco no soalho indiscreto. Tomou um copo d’água e deixou-se ficar junto ao fogão de lenha, aparência de adormecido, mas em brasas ainda por sob as cinzas.
A lua atingira o meio do céu e se esparramava em profusão. Arrepanhou o penhoar sobre a fina camisola. Friagem gostosa. Ia voltar pra cama, quando passos. Ficou aflita. Podia ser Seu Agenor. Descobri-la em intimidade. Que vergonha! Não!
Era Francis. Perdera por sua vez o sono. Embora o cansaço e a tarefa de levantar cedão. Veio ao pote e surpreendeu-se com a moça. Junto ao fogão.
- Vai ver a lua? Quis saber ele, numa objetividade desusada até.
- Parece que está bonita. Vem comigo?
O rapaz sussurrando de não despertar os da casa, dirigiu-se à porta.
- Se for pra ir que vamos. Já, fica tarde.
Saíram ao terreiro. O conforto da aragem parecia gesto de aconchegar. Caminharam em silêncio até a porteira. Clarisse, sem palavra, reparava nos detalhes noturnos revelados na luz suave. Diferente do sol que ofuscava, a lua sugeria os contornos. Uma maravilha! Coisa de não se perder por nada.
Subiu na porteira e ficou imóvel. Francis achegou-se a ela. O penhoar semiaberto deixava à mostra um palmo das coxas morenas de Clarisse. Ela nem se importava ou não percebesse. Nem ficou Francis atrapalhado com aquilo.
Razoável tempo, ficaram emparelhados na penúltima régua da porteira. Ela apoiada no mourão; ele, em equilíbrio. A moça tocou no ponto.
- Essas duas semanas foram boas para mim. Principalmente por ter te conhecido. Você de fato mudou meu clima. – Clarisse soltou-se do mourão e conchegou-se ao rapaz. - Acredita no que falo?
- Por que não? Acho bom ficar do seu lado. É gostoso conversar com gente nova. Moças de fora. Por aqui, pouca novidade. É bem divertida sua companhia.
Ainda um quarto de hora, ficaram naquele enleio. Francis deliciava com o calor da moça grudada nele. Falaram futilidades sem precisão de registro. Por fim, retornaram ao real e decidiram voltar a casa. Vinham sem pressa. Risinhos abafados na noite.
Na varanda, a moça estacou-se, voltou para o terreiro e olhou para o céu, abriu os braços, derreou a cabeça para trás. Francis observava. Clarisse assim parecia transfigurada na luz, jeito de anjo ou assombração. Temeroso de chamar atenção, por demora, ali no terreiro, caminhou para ela, disposto a trazê-la para dentro. Segurou-lhe a mão macia e Clarisse de propósito deixou-se cair de encontro a ele. Foi casual, mas calculado gesto e de súbito, Francis teve a moça ao alcance dos braços e da boca. Foi um beijo longo e intenso, acompanhado de quentes carícias. Perdiam-se um no outro. Súbito, Clarisse suspendeu o beijo desvencilhou-se dele e mais murmurou:
- Temos de entrar. Os outros. Bom ter cuidado. Aproximou-se de novo, chegou os lábios bem coladinhos ao ouvido do amigo e confessou suave. – Foi delicioso! – deu-lhe uma mordida na ponta da orelha - Vamos repetir tudo amanhã? – convidou.
- Hum! Hum! – foi o que conseguiu dizer o rapaz.
Em seguida, entraram quase sorrateiros, tal como saíram. Clarisse nem dormiu, ficou de olho pregado no velho telhado contando os pingos de lua que vazavam nos buraquinhos. Com pouco, percebeu o clarão do dia anunciado pelos passarinhos e outros animais despertos. Os bem-te-vis sempre os primeiros a saberem das coisas.
Francis dormiu leve e feliz. Pelas cinco, estava de pé no curral. Cara de ontem. Zé de Aurélio, um dos vaqueiros brincou.
- E aí, Romeu, como foi sua noite de amor?
Assustou-se. Então, alguém tinha visto? Fora imprudente. E se esse um desse com a língua nos dentes. Rebateu grave.
- Coisa feia de ficar bisbilhotando os outros. Apenas perdemos o sono e ela queria ver a lua. Bobice de moça de cidade.
- Sei... E você mostrou tudo para ela? Conta vai? O que sucedeu?
- Nada. Só conversa. À-toa. Sem complicações.
- Acho que está se enrabichando, patrão. Se seguir assim, teremos doce.
- Pode parar de chacota e cuidar do leite. O dia está que amanhece.
Zé sabia a hora de parar. Se seguisse na brincadeira, poderia azedar o caldo. Melhor deixar os dois em paz. Mas que tinha formiga naquele açúcar isso tinha, feijão com febre de bicho. Intacto ainda, mas em pouco aparecia o estrago.
A manhã inteira Clarisse passou na bica com Cícera. Era dia de lavar o atacado das roupas. Sexta-feira ensolarada. O canudo da bica em abundância, o cheiro forte e bom do sabão caseiro. Roupas em descanso nas folhas maceradas de são-caetano, outras tantas estendidas no verde coradouro, as enxaguadas, pelas cercas acenando ao vento.
Cícera notou mudança na amiga. Alegre e serelepe. Prestativa no serviço. Concluiu que do ar puro e sossego. Que mais podia? Nem viram o tempo chegando. O sol a pino, quando voltaram com as roupas enxutas.
- O certo é não deixar secar tanto para facilitar na passação – explicava a anfitriã.
No almoço, Clarisse comeu com apetite. Bem disposta. Sorridente. Francis tinha almoçado e fora terminar a tamina deixada no dia anterior. Precisava concluir a cerca antes que o pai reclamasse. Clarisse quis dele saber, mas não arriscou pergunta. Podiam interpretar por outro caminho o interesse.
Só à tarde, bem ligeiro e sem conversa, topou com o rapaz que se mostrava atarefado. Até à noitinha, labutava pelos currais, em entra-e-sai pelo quarto de ferramenta.
Pelas onze, apenas Francis e Clarisse ainda não dormiam. Ela pensativa nos acontecimentos. O enlevo da noite anterior. Que delícia repetisse tudo. Arriscado demais. Olhou para a amiga que dormia fundo e distante.
Francis, de sua parte, lembrava os comentários do vaqueiro. Será mesmo que foram vistos no terreiro? E se Zé falasse para alguém? Podia atrapalhar tudo.
Perto de meia-noite, levantou-se e foi à cozinha. Tomou água e ficou conferindo as coisas. Nada de fato. Apenas perdido o olhar nas latas enfumaçadas sobre a velha prateleira. Silêncio grande pela casa e lá por fora.
Clarisse ouvira os passos. Palpitou de emoção. Certamente ele a esperava. Era convite. Levantou-se, como da noite anterior, e foi deslizando para a cozinha.
Ao vê-la, decidido, Francis abraçou-a e deu-lhe um beijo ávido e sensual, apertando-a contra o batente da porta. Sentiu, com gosto, os seios rijos contra o próprio peito. Em seguida, fez gesto de silêncio, tomou-a pela mão e, abrindo a porta com cuidado, conduziu-a.
Sem dizer palavra, parou, com ela, num canto da varanda. Clarisse sentiu o rosto afogueado. Estava num lance delicado e decisivo do jogo. Precisava se controlar. Não recuasse agora. Respirou longo e fundo e descontraiu-se num sorriso, enquanto sentava-se no largo banco de bruta madeira. Tomou as mãos de Francis, que permanecia estático e mudo diante dela e desfechou, resignada:
- Então? O que vai ser? Por onde começamos?
O rapaz aproximou-se cheio de cuidados. Palavras não foram necessárias. Silenciosamente, deixaram que os corpos se entendessem. O dele pouco experiente; o dela, selado e puro.
Foi doce e bom o encontro. Plenamente se deram, em surpreendente descoberta. Incômodo pequeno, inicial, compensado na delícia de sensações nunca vividas.
Saciados os impulsos, ainda sem voz, deixaram-se em meditação. Os corpos em total arranjo. A respiração acelerada e quente.
Quando o galo amiudou o canto, souberam ser a hora de voltar. Tudo feito com zelo e discrição. Cada qual se aninhou no solitário leito quase intocado e amanheceram iluminados pela alegria plena da secreta entrega.
No sábado, para dúvida de Francis, a moça se mostrara fria e distante dele, embora alegre, sem sombra. Pensava em manter o clima de aproximação, mas ela retomou distância estratégica, ainda que doce e carinhosa.
No almoço de domingo, anunciou, para espanto de Ção e desespero de Francis, que tencionava retornar na segunda de manhã. Queria deixar tudo arranjado para o ônibus das sete e quinze.
Francis sentiu-se magoado. Num momento de confusão, pensou em tirar a limpo as razões dela. Tinha direito, afinal. Pensou mais e achou bobagem. Não podia ofendê-la com desmando. O melhor é manter-se ao natural.
Assim acompanhou-a até o ponto. A mãe de Cícera até chorou na despedida. O pai atrapalhado, como se filha sua fosse, em partida. Francis segurou firme. Manteve postura. Um abraço mal-ensaiado apenas e palavras pouco coordenadas dos dois. Mais, e ônibus diluiu-se na poeira, por ele mesmo assanhada, em direção da cidade. Lá, Clarisse tomaria condução para a Capital e, ainda mais uma, até sua casa, onde chegaria pelo anoitecer.
***
O suceder dos dias foi de angustioso vazio para Francis. Acima de todos, sentiu falta da visitante. Buscava disfarçar na labuta, sol-a-sol. A irmã notava o aborrecimento, mas não mexia em casa de marimbondo.
Então, chegou novidade de Clarisse. Carta longa e animada. Saudosa da estadia, tão agradável. Francis quis saber menção de si na correspondência. A moça fora econômica. Nada direto, objetivo. Talvez que esperasse dela a renúncia dos votos de religião e novo rumo de vida traçado. Nada disso. O que afirmava é que sentira reforço na intenção. Por certo, que os dias de descanso foram suficientes para torná-la, em fé, fortalecida e redobrada na disposição de seguir o noviciado.
Inacreditável, pensou o rapaz. Como pode? Agora que ela conhecera caminho de grande prazer e doação, como poderia negar em si a fogosa natureza? Por que abandonar inexplorada mina recém-aberta e promissora? Impossível compreender!
Veio o Jubileu de São Geraldo. A família inteira foi participar. A cidade formigava. Frades capuchinhos vieram do Sul, para pregar as missões. O povo delirou com a novidade.
Francis, até então, indiferente dos festejos, mostrou empenho e participou com entusiasmo. Longas conversas com frei Daniel, de quem ficou amigo. O frei era jovem. Galã. Levava as moças à loucura. Todas queriam só com ele confessar. Francis mostrou interesse. Subitamente, um lampejo de vocação brotou-lhe na mente, alimentado pelas palavras do novo amigo frei e bem provável pelas lembranças de Clarisse.
O sentido era que, incompleto, na impossibilidade de estar com ela, Francis buscasse na vida de mosteiro, sublime forma de plena aproximação.
Revelou à família o desejo e comoveu-os, sobretudo a mãe.
- Filho padre? É bênção das grandes. Que Deus guie o que for para bem.
Recursos estranhos, às vezes, a fé utiliza para conclamar seus escolhidos. Nem sempre intensas preces e orações. Também o amor físico de completa entrega corporal, pudesse acordar a luz de religiosa vocação?
Meses seguidos. E, então, Francis seguia, ao além de todos os desejos, em realização do sonho recém-acordado. Seria padre.
Fernando Antônio Belino
Enviado por Fernando Antônio Belino em 11/01/2020
Reeditado em 19/01/2020
Código do texto: T6839311
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.