Enquanto houver corda

Mestre Isidoro, um relojoeiro da cidade de Sonorlogo cuja especialidade eram os autômatos para grandes relógios, foi visitado certo em dia em sua oficina pelo velho príncipe Lisandro, governante da região. Lisandro desejava fazer uma encomenda muito especial.

- Vi vários dos seus autômatos em relógios por todo o reino, e sempre me encanto com eles. Como consegue fazer com que executem movimentos tão reais?

Como o príncipe, além de cliente, não era um concorrente, Mestre Isidoro não se furtou a revelar o seu segredo - que nem era exatamente um segredo, já que vários outros relojoeiros o utilizavam.

- Cartões perfurados, alteza; meus autômatos têm seus movimentos programados através de cartões perfurados. De acordo com a posição dos furos em cada cartão, eles podem executar vários gestos, como se fossem criaturas vivas.

- Então... eu posso escolher uma sequência de movimentos a serem executados? - Ponderou o príncipe.

- Naturalmente dentro de certas limitações, alteza. Mas, em princípio, sim - anuiu o relojoeiro. - Que espécie de autômatos teria em mente? Animais ferozes? Homens da floresta? Pássaros mecânicos que cantam?

- Não... nada disso - replicou o príncipe, expressão absorta. - Uma mulher e um menino.

E perante o olhar atento do relojoeiro, rabiscou num pedaço de papel os movimentos que desejava ver reproduzidos.

* * *

A encomenda levou meses para ficar pronta. Finalmente, foi instalada no salão principal do castelo do príncipe, usando as roupas que ele enviara para que a caracterização fosse a mais fiel possível. Lisandro fez questão de só entrar no aposento quando o conjunto estivesse pronto para funcionar, e assim foi feito. Mestre Isidoro o acompanhou, para ter certeza de que tudo sairia a contento. Quando as imensas portas de madeira foram abertas de par em par, o príncipe viu-se diante de duas figuras que pareciam estar à sua espera, a mulher e o menino, ricamente vestidos. Ela abaixou-se, pegou a criança nos braços, e esta estendeu os braços para ele.

- É tão real! - Admirou-se Lisandro, aproximando-se da dupla de autômatos.

Apanhou o menino dos braços da mulher-autômato e esta o envolveu, e a ele, num abraço. De longe, Mestre Isidoro acompanhava a cena com um sorriso no rosto.

- Está conforme seu desejo, alteza? - Indagou.

- Sim, Mestre Isidoro - murmurou o príncipe, de dentro do seu amplexo mecânico. - E lembre-se da parte final da minha encomenda, mesmo que leve anos para ser entregue.

- Tudo será feito conforme determinou, alteza - prometeu Isidoro.

* * *

Muitos anos depois, o príncipe Lisandro faleceu, sem deixar descendentes diretos. O herdeiro indicado, um sobrinho distante, Felisberto, teve que comprometer-se em aceitar as disposições finais do falecido para poder tomar posse da herança, o que fez de bom grado.

- Não posso alterar a disposição dos objetos no salão principal do castelo? Sem problemas! - Exclamou Felisberto.

Dias depois, Mestre Isidoro e seus ajudantes trouxeram a última parte da encomenda do príncipe Lisandro, e a instalaram, conforme havia sido solicitado, junto aos demais autômatos do grupo original.

Havia agora três autômatos, o terceiro deles construído à feição do príncipe Lisandro jovem. A mulher apanhava a criança, esta estendia os braços, o autômato Lisandro a segurava e a mulher envolvia a ambos num abraço.

A cena se repetia todas as vezes em que as portas do salão eram abertas. E assim ocorreu, durante muito e muito tempo.

- [12-12-2019]