CAIXA DE FÓSFOROS - parte 8
Dentro d'água, ao abrir os olhos, vi que o fósforo ainda brilhava, como um vagalume. Cri que era sonho:
"Tudo é possível ao que crê". Então puxei o ar… e ele veio.
Desci até meus pés tocarem a terra submersa da praia.
Uma luz clareou no meio do mar, e como a estrela de Belém, fui impelido a segui-la.
Andei até ver que ela entrou numa fenda no solo.
Pensei em meu pai, nas pessoas da superfície…
"O fósforo está aceso. O que é impossível num sonho?"
Adentrei naquela pequena abertura. E ali… eu descobri um paraíso.
Milhares de pedras, plantas e animais aquáticos que bailavam nas águas, de diferentes tamanhos e cores muito vivas formavam uma nova Atlântida. A Atlântida dos meus sonhos.
No meio daquela fantasia submarina, onde oxigênio e crenças são a mesma coisa, a luz foi descendo até quase tocar o solo. Nadei até o fundo e toquei na estrela luzente.
Ela tomou um formato humano. Meu avô apareceu sorrindo.
- Você vem? - disse ele me estendendo a mão.
- Pra onde?
- Tenho que te mostrar algo.
Abrahamicamente fui.
Ele ainda tinha o corpo envelhecido, mas percebi certa agilidade em seus movimentos. Eu apenas o acompanhava como sombra.
Enquanto íamos mar à dentro, as pedras mudavam de cor.
- Onde estamos indo vô? - perguntei de novo.
- Vejo que perdeu o medo do mar.
- Ué. Mas eu não perguntei isso.
- Apenas assinta que sim. Estamos lidando com medos.
- Mas eu não tinha medo do mar. Só não o conhecia.
- "O desconhecido assusta mais que o palpável."
- Oh vô. Deixa eu perguntar: depois de morto vocês vão para o céu, para o inferno, ou são levados à uma biblioteca gigante?
- Seu bobo. Lovecraft não é tão anônimo assim.
Entendi sua estratégia. Ele não queria que eu perguntasse "onde", mas "por que" estávamos indo.
- Bem. Por que estamos indo para "só Deus sabe onde"?
- Lidando com medos.
E não se tocou mais no assunto por alguns segundos, até ele parar bruscamente a ponto que trombei em suas costas. Ele sorriu.
- Chegamos. É ali. - ele apontava com seu dedo de pele enrugada e unha amarelada.
Ergui meus olhos e de uma pequena distância contemplei uma enorme caverna vermelha, onde sombras cercavam a entrada e algas podres flamulavam assustadoramente. Não vi nenhum animal marítimo na entrada.
- Que diabo de lugar é esse? Tá parecendo desenho da Disney.
- "Nas profundezas do meu coração, há túneis impenetráveis. E só quem mergulhar, então, verá d'alma o que o olho não tem coragem."
- Profundo vô. Que autor é esse?
- Sei lá. Inventei agora.
- Mas faz sentido. "Leb" ou "lebab" em hebraico é coração. A mesma palavra aparece quando fala da profundidade dos mares. Mar e coração são quase que…
- Ce anda praticando o que lê ou só sabe citar? - disse meu avô se sentindo contrariado por não ter sido ele que falou aquilo.
- Calma, veinho. - eu ri - Tava só confirmando o que o senhor disse.
- Tá, tá, tá. E então? Quer descobrir o que tem lá dentro?
- Huuummm… Curiosidade e segurança própria. Duas coisas que não andam juntas.
- Está tudo bem. É tudo um processo restaurador. Você vem? - me disse estendendo outra vez a mão.
"Processo restaurador". Fiquei com isso na cabeça e fui.
Diante da caverna, ele fez que ia entrar. Soltei sua mão e perguntei:
- Então… por que eu vou entrar aí?
- Lembra quando você me disse que seu maior sonho era uma coisa, mas após eu te dar a caixa de fósforos, suas experiências não foram nada parecidas com o que me descreveu?
- Aaaaahhhh. O senhor está mostrando quais são meus verdadeiros sonhos e medos, é isso?
- Exato. Nem sempre sabemos de fato. O sonho ajuda a escolher.
- Ou não, né?
- Mas você não me respondeu qual o seu maior medo.
- Ah vô. Sei lá. São tantas coisas. Quase todo mundo tem medo de morrer, do escuro, de altura, de um bicho feroz…
- E se seu medo for a verdade?
- Ai, desgrama! De novo isso?
- É só analisar o fato de que você ainda não contou.
Franzo a testa.
- Aff. No momento certo, vô. Agora não é hora.
- Ele não vai descobrir.
- Creio que não.
- Você está enganando a ele ou a você mesmo?
- Às vezes a mentira faz bem. É segurança.
- O pai dela deve estar orgulhoso de você depois de você dizer isso. Nunca vi placebo curar de verdade. É tudo coisa da cabeça.
- É só por um tempo. O dia está agradável. Depois eu conto. Prometo. Não estou preparado. Aliás, o que tem nessa caverna mesmo? O que o senhor quer dizer com "verdade"?
- Apenas entre. É para um bem maior.
- Já lhe contei que odiava ser convencido pelo senhor pra fazer aquilo que eu não queria quando eu era mais novo? Assim o senhor nunca lavava a louça ou o carro.
- Algumas coisas não precisa muito argumento. Só aceitação.
Fiz que ia entrar. Ele me disse:
- Acenda um fósforo antes.
- Debaixo d'água?
- Você está muito engraçadinho, hein, Júlio.…
- Tá bom. Desculpa. Tô zoando.
Acendi.
- E agora?
De dentro da caverna, uma voz, semelhante a do meu pai gritou meu nome seguido de um palavrão:
- JÚÚÚLIOOOOO!!!
Meu coração bateu dolorosamente ao ouvir aquilo. Dei um passo para trás:
- É melhor não, vô. Vamos embora.
- Você não vai entrar, Júlio? - meu avô questionou.
- Não sei, vô. Acho que não tô preparado.
A voz de dentro da caverna gritou outra vez:
- ESSE MOLEQUE É UM MAL EDUCADO! VOCÊ O ENSINOU ERRADO!
- Vô, por favor. Vamos embora. Não tô gostando disso.
Outra vez a caverna ecoou uma voz. Dessa vez a da minha mãe:
- NÃO ESQUEÇA QUE ELE É SEU FILHO! JÁ NÃO BASTA O QUE OS VIZINHOS DIZEM DE MIM POR CULPA SUA. VOCÊ PASSA MAIS TEMPO FORA DE CASA DO QUE DENTRO!
O som de um copo se quebrando veio da caverna:
- Avô, é melhor não...
- Júlio, encare seu medo. Lembre-se: sonho e realidade.
- Não posso…
A caverna rimbombou a voz do meu pai:
- VOCÊ É BURRA OU SE FAZ? NÃO SE LEMBRA DE TUDO O QUE FIZ POR VOCÊ?! E AGORA VEM COLOCAR O MENINO NO MEIO! EU SEI COMO EDUCAR MEU FILHO!
Essas vozes… essas falas… essas… lembranças... submergiram em minha mente e me perturbaram:
- Vô - eu já estava chorando - por favor, não.
- Entre, Júlio! Entre!
Outra vez a caverna. Dessa vez minha mãe:
- SE VOCÊ NÃO FIZESSE AS COISAS QUE FAZ MERECERIA MAIS RESPEITO! PENSEI QUE FOSSE UM HOMEM DE VERDADE, SEU…
- Júlio - meu avô tentava me encorajar - Vamos, vença isso!
- Não consigo, avô…. Não consigo…
Ajoelhei no fundo do mar em prantos deixando o fósforo cair. Meu avô me abraçou. Eu sentia falta daquele abraço. Ali, como o mar, ele me envolveu e me senti aceito.
- Eu não aguento, vô!
- Seja forte, filho. Você precisa primeiro encarar a realidade antes de falar com o seu pai.
Levantei a cabeça com dificuldade. Tentei enxugar as lágrimas, mas todas o mar engolira:
- Mas pra quê tudo isso, vô?
- É necessario passar por Samaria, Júlio.
- Ok, vô. Tudo bem.
Apanhei do chão o fósforo que ainda queimava e com meu avô adentramos a caverna. A chama do fósforo dissipou as trevas da entrada.
Lá dentro, nas paredes da gruta, vários quadros começaram a aparecer em meio a escuridão iluminada pelo fósforo que, como uma tocha, reluzia.
- Nesses quadros se encontra sua vida, Júlio. - disse meu avô.
Observei o primeiro. Era a foto de um casal jovem abraçado. Um homem e uma mulher muito bonita.
- Quem são?
- Seus pais.
Em outro quadro, o mesmo casal estava segurando um bebê envolto num lençol azul.
- Esse é você, Júlio.
Algo me chamava atenção. Alguns traços do casal eu reconhecia, outros não. Desconfortável, indaguei:
- Vô, são mesmo meus pais?
- Sim, Julinho. Não reconhece eles?
Tive medo de responder…
Penetrando um pouco mais na caverna, três quadros surgiram no outro lado da parede.
Em um deles, reconheci o homem. Era mesmo meu pai. Eu estava em seu colo.
No outro… o retrato de uma jovem que eu reconheci de imediato as feições. Minha mãe.
No outro, um velório, pessoas reunidas, um caixão e meu pai chorando. Eu estava nos braços do meu avô, que chorava também.
Dentro do caixão, a mulher da primeira foto.
Estremeci por completo:
- Vô… quem é essa mulher dentro do caixão?
Ele respirou, e sem dizer nada me abraçou. No seu abraço, chorei as saudades de quem nunca conheci.
Continua…