PÁGINA SETENTA E SEIS
Vamos primeiro dimensionar para evitarmos o pânico global. Ocorreu somente no Brasil. Exclusivamente no idioma português. A exata explicação ainda está na fase das buscas e investigações científicas. Países do mundo inteiro tentam entender para evitar que o mesmo se passe em suas nações. E se eu contar ninguém acredita. Mas esforcem-se, deem-me um crédito que seja. Apelo logo depois, na sequência, à fé e nela aposto. Foi coisa de milagre, ou anti-milagre, o acontecido. Logo após, por última opção, no absurdo.
As especulações, entretanto, já ultrapassaram as fórmulas matemáticas, tornaram-se obsoletas, (absoletras), e sobretudo as ladainhas. Falaram em explosão solar, desígnios de um Orixá por não adotarmos o iorubá, que estava previsto no Apocalipse, citaram em signos indo-arábicos a referência ao capítulo de Nostradamus... (também desapareceram os algarismos romanos).
- Foi um Bug implementado pelos espias.
Cientistas apontaram uma revolução do subconsciente afetando a visão e o campo cerebral responsável pelo entendimento literal.
*
Assim que acordou olhou ao relógio para entender em que espaço do tempo estava. Haviam horas disponíveis para acordar direito. Se tivesse olhado bem ainda assim não teria percebido. Foi coçar os olhos, levantar para adentrar o banho e reparar no cabelo alvoroçado pelos anjos do sonho. A caixa do Banco Imobiliário ainda resistia com o auxílio das fitas durex mas as escritas da caixa enuviaram-se. Permaneceram intactas somente as cores e as geometrias dos ícones. Não era algo importante naquele dia que prometia pelas tarefas programadas e produtivas, já agendadas. Pensou e ainda cética saiu do banheiro, levantou a tampa da caixa do jogo e viu dentro as cédulas com suas representações apenas do valor numérico. Estranhou. Nada estava escrito nos cartões da sorte. Apagaram-se os títulos de propriedade?! No tablado somente os desenhos dos caminhos.
Ela lembrava a data de vinte e cinco do doze de oitenta e dois e pode confirmar com os números ainda marcados na parte interna da tampa. A caneta azul ainda era moda naquele inesquecível Natal.
O tempo estava de fim de inverno em uma região onde não há inverno definido. Acendeu o celular para conferir as horas com o marcador de pilhas e cruzou as informações. Viu mais atentamente alertando-se que, segundo seu parecer, o telefone poderia ter caído da noite durante o chão. Trocava as palavras para tentar um efeito poético do tombo no seu pensar. Entre tantos sacolejos os desenhos dos aplicativos lá estavam, mas, as descrições não se viam. Mudou de página e o mesmo ocorria. Espreguiçou-se despreocupada. Iria desligar, tiraria a bateria e todo normalizar-se-ia.
Foi em seguida aos asseios, depois cozinha e sala para o café. Adiantou os processos. Aplicava-se aos métodos para não fugir das obrigações sistemicamente esquecidas. Voltava para rever uma tarefa, olhou ao redor, hasteou a cortina do dia. Contabilizou nos dedos da mão: água, terra, fogo, are luz. Fechou com efeito, todavia, a torneira que gotejava. Abriu a sinistra janela para o vento não soprar sobre a chama do fogão, fechando a destra.
O gole de café fora primeiro para apreender a temperatura, o segundo um golpe, muito mais generoso. Agora sim, estava acordando. Olhou para o amarelo da capa do livro no sofá. A silhueta, o formato, o design.
- Como pode chegar ao consumidor ávido por ideias, um objeto, um livro com falha total de diagramação?! Capa sem título, autor, prefácio, índice, capítulos? Onde estão as letras?!
Olhara o produto antes de pagar. Estava tudo normal demais. Folheou e seguiu ao caixa de pagamentos. A Caixa prestativa antecipava para pagamentos em débito direto ou a crédito, por cartão. Ela avançou por estes minutos.
- Acaso na hora de embalar trocou-se o produto? Como?!
Ela acompanhara todos os atos.
Algo raro acontecia. Retrocedeu. Foi ao espelho, olhou-se! Fora a cabeleira tudo parecia normal. Via-se bela pela manhã. Lembrou-se hoje que os elogios matutinos não atingiriam seu ego. Recordou que corrigia sempre seu alguém, seu algo...
- Como pode dizer que sou bela com esta cara inchada de sono, estas vestes dormidas, estes cabelos desalinhados?!
Falou-se: - Negra, olhe-se como se fosse o seu homem. Tente. Humm...boa luz, recue o foco, imagine o ângulo sem girar o corpo. Suponha a pele acariciando a camisa e não o contrário. Ajuste o brilho, reveja o alcance. Dê um zoom no tato, nas pontas dos dedos, respire um perfume, desprenda o cabelo...vista uma loucura. O que ele adora em você é este seu porte, sua elegância cultural.
- Que homem bem maluco, este meu!
As imagens desviaram-na do presságio, já cataclísmico. Resumo da história: as letras sumiram do horizonte. Nenhuma se via, nem na Caixa do Jogo Imobiliário, nem na tela do telefone celular, nem nos frascos de perfume, no bordado do pano-de-prato, nem nas páginas, capa, frontispício do livro. Caos literal!
- Não teria sido a má qualidade das linhas de bordar ou o efeito da água sanitária no esquecido pano-de-prato?!
As letras em ponto-de-cruz, "Lembrança de Barbacena", não apagariam caso uma queda ao solo permitisse tal descuido? Definitivamente, não. Roubaram todas as letras. Ou sequestraram as vinte e seis.
A grandiosidade e a gravidade do problema estabeleceu em Salvador, na Bahia, a " Convenção de Retorno à Oralidade". Tudo "boca à boca". Nela os palestrantes deveriam apresentar os danos e as possíveis soluções para reparar o caos estabelecido.
- Porquê somente com o português do Brasil?
Perguntou um historiador premiado. Sua teoria passou por Pessoa e chegou a Diogo Cão.
- É o fim da Álgebra! O que faremos sem as incógnitas "x" e "y"?!
- É o fim da Física sem a constante "K"?! Sem a força "F"?! Sem o vetor “ (v )”?!
Alarmou um renomado matemático.
- Desaparecerem somente as sete vogais já teríamos muitos transtornos.
Adicionou um letrado, desletrado agora, durante a conferência.
Um programador atestou que isto é possível em computação chegando-se no software-mãe, na semente-raiz e colocando entre parêntesis, exemplo: a letra (a), assim, todos os “as” “des_p_receri_m” de todos os sistemas.
- Mas como explicar todas as letras de um livro?!
Um imaginoso, ainda com os signos em voga, publicou em redes sociais que aquele que detém a patente de todas letras virá futuramente para cobrar pelo seu uso. Isto que ele fez no Brasil foi apenas um aviso, um teste. Esta mensagem desapareceu, não foi checada a fonte e foi impossível rastrear a origem.
Do escudo de futebol sumiu a letra encimada por estrelas. Na esquina das ruas onde ela mora sobrou um hexágono vermelho sem as letras da ordem PARE; caiu sobre os carros abalroados. Ninguém se feriu, graças!
*
Dias, muitos dias depois tudo foi recomposto. Eles, os signos, foram voltando uma a cada vez, lentamente. Este é o primeiro relato visível completo pós-hecatombe dos grafemas. Acaba de retornar, bem agora, o "z". Nossa bela protagonista podia agora ensinar ao seu algoz tudo sobre o Banco Imobiliário - ao seu alguém sobre o gosto maravilhoso que tem certas letras como aquela que inicia o seu primeiro nome: nzere ou nzadi significa em kikongo “rio onde desaguam todos os rios”. Neste momento então, como ocorre em um estuário, lágrimas orgulhosas lubrificaram os olhos de Zaida. Ela, orgulhosa e emocionada, desejou protegê-los.