Prazeres tenebrosos

- Desça o calção! - pedi com voz firme, empostada. Após correr a língua até a ponta do próprio queixo, respondeu-me:

- A mim ninguém impõe ordens. O que te capacita com tal ousadia?!

Descamisado, esbravejou, ocultando as mãos nos bolsos da vestimenta branca. Esta evidenciava a silhueta do órgão genital. Pigarreei, ao identificar em sua fala, irritação extrema. Favorecido pelo facho luminoso, vindo não sei de onde, percebi as veias que, traçando os bíceps, perfaziam o diâmetro de meu dedo mínimo. Recordou-me o Paulinho Supino, um colega dos tempos do ensino médio.

Os leitores que acompanham meus textos sabem que, diante de uma situação tensa, não consigo reter o fluxo da urina. Contudo, o xixi apenas empapou levemente a cueca. Dois inspetores de cemitério adentraram por uma janela sobrevoando a garagem. Desconheço como cheguei ao ambiente.

Assumo: ao disparar a ordem desavergonhada, faltou-me prudência. Aquela constituía a segunda oportunidade que eu me deparava com a figura. No primeiro encontro, o cidadão emitiu, ao vácuo um comentário desconexo, enquanto o elevador panorâmico cumpria conosco dois andares.

Sendo presa urbana, carrego em mim a urgência do dia a dia contemporâneo associada ao fator idade. Estou próximo de completar trinta e cinco anos de vida, ou seja, a consciência da preciosidade de cada minuto é mais nítida. A juventude desenvolve passos largos, em sentido oposto a mim. Assim, justifico a escassez de preliminares no instante de investida ou galanteio.

Apreensivo, franzi a testa e girei o tronco na direção da claridade. Num berro, o caboclo identificou-se como Jurupari. Desapareceu em meio à tradicional fumaça rosa. Ali, concretizou a última vez que nos deparamos frente a frente.

Agora, amigo, irei confidenciar um fato recorrente, após este episódio. Às sextas-feiras, um urubu, lança uma flor roxa no meu quintal, com um bilhete, onde está escrito: “Faça o chá”. Solenemente, o recolho. Preparo a infusão e bebo antes de dormir. Ah, quanto aos sonhos que me vêm, redigirei outras narrativas para revelar os detalhes tenebrosos...

Ronaldo Marinho
Enviado por Ronaldo Marinho em 17/10/2019
Reeditado em 25/03/2021
Código do texto: T6772155
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