CAIXA DE FÓSFOROS - parte 5

- Mas que raio é isso? Quem acendeu esses fosforos?

De repente meu vô apareceu e tocou meu ombro sorrindo:

- Vô, o que está acontecendo?

- Apenas sonhos e pesadelos se tornando realidade... e vice-versa.

- Mas minha mãe tá com câncer mesmo? E… e meu emprego? Eu passei mesmo na entrevista? Quem era aquele cara de azul? Por que ele tinha meu rosto?

- Veja os fósforos.

Estavam apagando.

- O que têm eles?

- Isso vai se repetir.

- O que? Como assim repe…

Tudo se incendiou e num momento eu estava no meu quarto outra vez.

- Oxe! Mas o que…

Meu pai foi até o quarto:

- Oh moleque, você é surdo? Tô te chamando faz um tempão!

- Hein?

- Acabaram de ligar. Confirmei uma entrevista sua pra hoje.

- Entrevi…?

Lembrei da frase do meu avô.

- Ah sim. Graças a Deus! Finalmente pai. É pra empresa X, não é?

- E eu é que s… É. Essa mesmo. Falaram que você mandou currículo e no dia a vaga pedia experiência. Aí abriram um novo processo seletivo. Viram seu cadastro e chamaram.

- 9h00 na Rua D?

- Exato.

Separei meus documentos numa pasta e fui me arrumar. Sem banho.

Anotei o número do PIS num pedaço de papel.

Não sabia passar roupa, então vesti uma camisa social amassada.

Por impulso do já conhecido, coloquei a caixa de fósforos no meu bolso. Antes de sair, meu pai me disse:

- Queira Deus te contratem, Júlio. Você sabe… Agora que somos só nós dois…

- Pai. Não quero deixar tudo em suas costas. As contas atrasaram e não vejo a hora de ajudá-lo. Aliás, não quero que os vizinhos digam que o senhor tem um parasita em casa.

- Tá. É. Tá bom.

Ele não me pôs a bênção. Voltou pro sofá acenando com a mão.

No ônibus não havia lugar pra sentar. Um jovem de boné ouvindo uma música horrivel estava no assento preferencial enquanto uma idosa ia em pé.

- Ei! Amigo?!

Ele se assustou como se tivesse despertado de um transe:

- Oi? Diz ae, campeão.

- Você poderia, por favor, dar o lugar para a senhora?

- Oh, irmão. De boa. Foi mal ae.

- Senhora, por favor. Sente.

- Oh filho, obrigado. Mas eu não precisa. Já vou descer.

- Péra. Não vai sentar? Mas o moço deu lugar, senhora. Sente-se.

- Não precisa, filho. Meu ponto é logo ali.

"Senhora, o moço deu o lugar. O ônibus está cheio e a senhora não faz idéia do quanto eu e os demais que estão em pé queriam se sentar. Então ao invés de ficar fingindo humildade e suportar o insuportável pra sua idade, quer fazer o favor de ocupar a porcaria desse assento?"

Graças a Deus isso ficou só no meu pensamento.

Minutos depois a idosa desceu. Duas moças com roupa colada subiram. Sussurravam uma música parecida com a que o jovem de boné estava ouvindo antes. Uma delas fez que ia se sentar, quando vi que uma mulher corpulenta passou a catraca. Sentei primeiro.

O cara de boné ficou me encarando. Tive uma ideia:

- Espera aí. Eu te conheço!

Ele estranhou e se aproximou:

- Tá louco, irmão. Tu me viu aonde?

- Poxa vida! É você mesmo! Chega mais, meu.

- Mano, cê tá louco. Nunca te vi.

- Como nunca? Da escola, pô.

- Que escola? Ce estudou no Carvalhaes?

Eu não fazia idéia que escola era essa. Mas o plano deu certo. A mulher corpulenta passou bem em cima dele quase o levando pra fora.

- Ah não, campeão. Desculpa. Tô me confundindo. Foi mal aí.

Ri baixinho.

Passado muito tempo dei sinal e desci. Muitos passageiros também. No mesmo ponto. Não vi ninguém de camisa social azul.

Vi as horas no celular. Lembrei do sonho e tive medo:

"Meu Deus! A mensagem. Vai chegar daqui a pouco."

Respirei fundo e tentei focar na entrevista.

- Amigo, que horas são, por favor? - perguntei a alguém no ponto.

- 9h00.

- Beleza. Outra pergunta. Pra chegar na rua D eu tenho que atravessar a avenida, pegar a primeira esquerda, seguir reto, subir a ponte, e depois virar na segunda direita?

- É o que? Não enten…

- Não. Nada. Desculpa. Obrigado.

Esperei o farol abrir. Acertei o endereço de primeira. Chegando na empresa, quis recepcionar o recepcionista:

- BOM DIA, AMIGO! TUDO BEM?

O moço quase saltou da cadeira e deu um tímido "bom dia." Pediu meus documentos:

- Ó, já aviso logo que o RG tá meio desatualizado, entende? Tô com cara de ensino médio ainda.

- Ok né. Passa esse cartão na catraca. Quarto andar. Sala com porta de vidro ao lado.

Acertei passar o cartão e tomei o elevador.

Na sala com porta de vidro tinha várias carteiras. Quase todas ocupadas. Sentei bem atrás de uma onde não havia ninguém na frente.

Nesse instante o celular vibrou no bolso. E a angústia me fez vibrar também.

Uma mocinha entrou, falou da empresa e sobre a vaga. Não consegui prestar atenção.

Distribuiu canetas, fichas pra preencher, provas com 30 questões e folhas pra redação. Ela saiu da sala e nos deixou escrevendo. De repente se ouviu um sonoro:

- CACETE! ESQUECI O NÚMERO DO PIS!

Eu não.

Sobre as questões, nada fazia sentido pra mim. Não conseguia me concentrar direito.

O celular vibrou outra vez. Não visualizei. Um calafrio subiu a espinha. O peito pesou.

Enquanto faziamos a atividade a mocinha foi chamando um por um numa sala a parte para que com o gestor eles fizessem uma entrevista particular.

Fui o último a ser chamado. Fiquei sozinho na sala.

Não pude completar a prova. Só pensava na minha mãe. Minha. Minha. Minha mãe.

O celular vibrou. Dessa vez repetidamente.

Desesperado atendi:

- Alô? Mãe?

- Filho… - sua voz era de choro.

Já comecei a chorar ali.

- Senhora, mãe.

- Você já sabe?

Minha agonia fez com que eu me levantasse da carteira quase derrubando tudo:

- Mãe. Me escuta. Deus tá no controle, tá. Vai dar tudo certo.

Ela só chorava do outro lado da linha.

A moça chegou na sala. Ela chamou meu nome. Respondi com o celular ao ouvido:

- Peraí, só um segundo moça.

- Quem é filho? Onde você tá?

- Não, mãe. É que tô numa entrevista, mas pode falar.

- Ah filho. Me perdoa. Depois a mãe liga então…

- Não. Não. Pode falar, mãe. Não desliga, por favor.

A mocinha veio até mim:

- Tá tudo bem, moço?

- Tá. Tá sim, moça. Já tô indo.

- Mas moço, não pode celular aqui porque...

- Eu sei, moça! Só mais dois minutos, tá.

- Senhor, nós temos horário. Não posso deixar o gestor esperando!

- Escuta aqui, caramba! - esqueci que estava com minha mãe no outro lado da linha e fui ríspido com a mocinha - Minha mãe tá com suspeita de câncer e eu tô tentando saber o que aconteceu com ela. Então por favor, tem como parar de encher o saco e me deixar falar com ela?

- Filho, o que está acontecendo? A mãe vai desligar. Eu não quero te atrapalhar, filho.

- Não, mãe. Por favor. Fala comigo. Pelo amor de Deus. O que aconteceu?

- Senhor - a moça disse tropeçando nas palavras - eu preciso saber se você ainda vai participar do processo seletivo.

- Calma ae! Já vou! - voltei pra ligação - Fala mãe. O que houve?

- O exame não deu nada, filho.

- O que???

- Moço, você vai continuar ou não? - a mocinha insistia.

- PERAÍ, MOÇA! Mãe, é sério? Como assim não deu nada?

- Graças a Deus não deu nada, filho. Era apenas suspeita do médico. Quando o resultado chegou, descartaram toda a suspeita de câncer.

Dei um enorme "GLÓRIA A DEUS!" naquela sala.

Surgiu um rapaz alto de bigode que se dirigiu a mocinha:

- O que está acontecendo aqui? Por que a demora?

- É esse moço. Ele tá participando da seleção. Mas ele não sai do celular.

Eu chorava de alegria.

- Deus é fiel, mãe! Tô muito feliz! Só que agora eu vou ter que desligar. A moça tá me chamando aqui.

- Tá bem, filho. Mãe te ama. Fica com Deus.

Ao fundo, pude ouvir uma voz de homem na linha:

"Ele é o Júlio, amor?"

- É sim, meu bem. - ela respondeu.

Emudeci.

- Tchau, Júlio!

Não respondi.

- Júlio?

Desliguei. A mocinha estava esperando.

Peguei minhas coisas, pedi desculpas a ela e ao cara de bigode, passei no meio deles e fui embora.

Averiguei os bolsos. Não havia fósforo aceso.

Peguei o ônibus pra voltar pra casa. Sem chão.

No assento preferencial, um jovem de camisa social azul amarrotada me encarava. Seu rosto começava a envelhecer rapidamente. Então reconheci quem era...

Continua…

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 11/10/2019
Reeditado em 11/10/2019
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