CAIXA DE FÓSFOROS - parte 3

Fui transportado à um lugar com cores cintilantes por toda a parte. Nem Zhangye Danxia da China era tão colorido. Porém o chão era transparente.

Corri em várias direções, o que me pareceu que sequer saí de onde estava.

Abaixando a cabeça, vi que meu corpo ainda estava no quarto, sorrindo e admirado segurando um fósforo que queimava na ponta.

- Que bom que você veio, Júlio.

Aquela voz era familiar:

- Vô Gumercindo?

Ele vestia as mesmas roupas. O chinelo de dedo, a calça jeans velha, a camisa social xadrez branco e marrom e apoiado em sua bengala.

- Onde estamos? E que caixa era aquela?

- Seja bem-vindo ao Mundo dos Sonhos. Onde o surreal se realiza.

- Péra. Isso aqui é um sonho?

Ele apenas sorriu:

- Vovô, que lugar é esse? E como pode ser um sonho se eu estava acordado?

- A caixa que eu lhe dei é especial, querido neto. Cada fósforo representa uma vida nesse mundo.

- Ah! Quer dizer que esse limbo é o mundo dos sonhos e a Caixa de Pandora tinha fósforos? Era o que me faltava. E por que logo fósforos? Qual a lógica?

- Não seja incrédulo, mas crente. Eles, quando riscados, trazem o fogo, que ilumina e aquece. Primeiro se acende a cabeça. Depois o que estava na ponta do fósforo se espalha por todo o palito. Consumida a chama, tudo vira cinza. Te lembra alguma frase?

- A memória não é tão confiável, ainda mais a minha. Mas me lembro sim . "Como um sonho, voa, e não será achado, e será afugentado como uma visão da noite."

- Sonhos se tornam cinzas quando acordamos, neto. Um ou outro mexe com a gente.

- Tá. Mas o que significa isso?

- Acha que o fósforo era real? - ele me perguntou.

- É claro, vô! Por que não seria?

- E porque se dissolveu em cinzas?

- Porque queimou.

- Não só isso. O que ele representa? Lembra de Poe? "Tudo é um sonho dentro de um sonho"?

- Não sei não, vô. O papo tá estranho, estamos num lugar maluco que mais parece ter saído da mente de um usuário de droga e o senhor fica aí falando esse negócio de sonho com cabeça de fósforo. Não tô entendendo mais nada.

- Olhe pro seu quarto. O que vê?

- Eu vejo EU.

- E quanto ao fósforo?

- A chama não apaga. Mas e por que eu estou aqui e meu corpo lá?

- Quando ela apagar, você volta pro quarto.

- Aaaahhh… então a duração de uma chama é o tempo que o sonho… Aaaahh! Poxa, vô. Se o senhor fala isso no começo eu já teria ent…

- Me diga, Júlio. Qual foi o seu melhor sonho?

- Uau! É sério que o senhor quer que eu diga?

- Aquele em que você não queria acordar de jeito nenhum.

- Bem… he he. Foi um sonho com uma garota. Ela era linda. Estávamos indo pra minha cama e então ela…

- Ok. Pode parar. Já entendi.

Senti um leve prazer ao contar o sonho.

- Nossa! Uh! Meu Deus. O que é isso, vô?

- É a manifestação de uma chama que não se apagou. Um sonho que ainda queima em sua cabeça. Acha que pode realiza-lo?

- Se posso não sei. Mas seria uma delícia.

- Agora me fale qual foi seu pior sonho?

- Que?

- Seu pior sonho. Pesadelos são sonhos também.

- Meu pior sonho?

- Sim. Fale.

- Creio que foi quando…

As cores do lugar se escureceram até se tornarem negras. Um vento, não sei de onde, começou a gemer ali.

- Foi quando…

Meu coração retumbava com velocidade.

- Foi…

As lágrimas rolaram.

- F…

Olhei pro quarto. Ainda estava vidrado na chama do fósforo. Dessa vez com temor.

- …!

Minha voz não saía.

- Júlio? Pode me ouvir?

Um rio de sangue surgiu em minha direção. Ouvi um copo quebrar-se. Ratos apareceram. Quis correr, mas as pernas não se mexiam.

- Abra os olhos, Júlio!

O chão saiu dos meus pés. Me desfiz em pedaços e comecei a cair num abismo.

- JÚLIO, ABRA OS OLHOS AGORA!

Pisquei os olhos. E quando abri, estava no meu quarto, segurando um fósforo apagado.

Minha camisa estava encharcada, minha cueca me incomodava como se tivesse urinado. Não era urina.

Por alguns minutos fiquei atônito e sem reação.

Peguei a caixa e risquei mais um fósforo. Falhou.

Risquei outro. Quebrou. Depois de algumas tentativas, consegui acender um. O quarto foi inundado pelo fogo e novamente me encontrei naquele lugar. Meu avô me aguardava.

- Sonhar a mesma coisa numa noite só não é tão fácil, neto.

- Vô, por que estou aqui? O que está acontecendo comigo?

- Sua realidade lhe oprime, Júlio. E você se viciou em desfrutar de uma alegria virtual. Mas isso não lhe é próprio, é artificial.

- Como assim?

- Quando angustiado você tem cometido dois erros. Um é tolerável em certa medida. Outro não.

- E quais são?

- Você não suporta sua realidade e tenta fugir dela. Segundo: você foge dela buscando viver uma vida que não existe.

- Está dizendo que não posso mais usar a Internet?

- Estou dizendo que existe uma realidade que você nega e uma não-realidade cibernética que você quer materializar. Geralmente há pendências emocionais em pessoas que fazem isso. E esse… é o seu caso.

Silenciei pela vergonha. Eu sabia do que ele estava falando.

- Por isso te dei a caixa.

- Quer que eu sonhe?

- Mais do que isso. Quero que através dos seus sonhos você encare melhor sua realidade. Você está em trevas. E um fósforo aceso seria a melhor opção para te tirar dessa escuridão em que se encontra.

- Mas pra quê?

- Faremos da seguinte maneira. Na semelhança de Virgílio e Dante em Divina Comédia, e do Pequeno Príncipe, visitaremos alguns lugares dos seus sonhos mais particulares. Desde o extremo do agradável ao extremo do terrível. E por fim, quando você tiver entendido a relação que esses dois mundos tem com a sua vida, entregue o último fósforo ao seu pai, e lhe conte a verdade. Em seguida, acenda-o.

- Mas por que vocês querem que eu fale a verdad…

- Nos vemos mais tarde. Não mostre a caixa a ninguém.

O lugar foi coberto por chamas coloridas. Ele relampejou, e eu abri os olhos. Estava no quarto com o fósforo consumido. Já era manhã.

Continua…

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 02/10/2019
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