O SABOR DA EXISTÊNCIA
7482 Km.Um oceano de permeio.A ausência de realidade física e palpável.Nenhuma evidência de provas.E no entanto, uma infinidade de possibilidades.
Mário conhecera-o através de imagens e de poesia, uma espécie de charro partilhado, um fumo, uma ilusão.
No íntimo e pouco a pouco colocara-o mentalmente na prateleira dos amigos íntimos.Por muito insano e absurdo era como ele sentia que podia considerar aquele relacionamento singular mas afinal tão comum no quotidiano de milhões de pessoas, muitas delas solitárias e com histórias reais falhadas.
Murilo era o amigo com quem ele desejara ter contado a vida inteira.Não existiam tabus entre eles, ambos reconheciam no mais fundo de si próprios a importância do segredo de não abusar da sensibilidade alheia e as suas filosofias de vida tocavam-se tão diferentes pareciam.
Tinham tido supostamente a mesma profissão embora em contextos diversos e desempenhos opostos.
Murilo percorrera um caminho de liberdade e procura, aventurara-se e arriscara , ganhara e perdera como uma criatura selvagem que dá saltos espectaculares na savana, atravessa o rio a nado, se encontra e se perde…fora uma espécie de gaúcho espiritual, pertencera a bandas, descobrira a Beleza, acasalara, procriara, haveria decerto mulheres apaixonadas com a cabeça a andar à roda desorientadas no seu passado, descendências, separações, despedidas e partidas, voltas e reviravoltas e outras cambalhotas e agora um rito de passagem numa idade madura!
Ao telefone:
- Fiquei … intrigado…desististe mesmo?Proponho que forjemos um encontro em Cabo Verde…
- O arquipélago no Atlântico.
- Isso.Encontramo-nos na praia e podemos fazer uma caminhada juntos à beira mar.Teremos tempo para falar.
- De acordo.Quando?
- Hoje.Meia noite aqui e cerca de dezoito horas aí.Podes?
- Vou dar um jeito.Até.
À meia noite, Mário sabia que a casa estava adormecida.Tomou um banho.Vestiu uns calções e uma t-shirt e descalço atravessou o corredor e entrou solenemente no escritório.Ligou-se à rede.Escolheu uma imagem de Boa Vista no Barlavento e no extremo do areal esperou que a presença de Murilo se fizesse sentir.
Ele trazia um capuz e descobriu-se. O diálogo estabeleceu-se ao longo da praia vasta.
- Sempre te dispões a deixar isso para trás e a olhar em frente, a arriscar um novo trabalho?
- “Sobre sentir que a minha velha actividade ficou para trás digo que viver é sinónimo de estar em movimento. Claro que nos cansamos envelhecendo e o trabalho árduo e a dedicação esgotam-nos.O caso é que sinto ter cumprido meu papel social nessa área mas, por outro lado sinto-me vivo e activo e não posso fugir do que eu sou”.
- Quando arranjamos coragem para deixar um trabalho que nos ocupou anos e anos geralmente é porque não há nada a perder.
- Eu só não deixo que a decepção me vença.Opto sempre por seguir em frente.Custe o que custar.
- Gostava da tua coragem.Acho que toda a vida pensei, pensei e a maior parte das vezes preferi empreender pequenas reformas, reajustamentos, a arrancar a página do livro e a começar de novo.
- Sabes? Prefiro enxergar-me “como um humanista por apropriação cultural, uma espécie de franciscano que nunca aprende por amar tanto, um marxista-budista não praticante, alguém que ainda não concilia as suas contradições…”
Mário julgou ouvir o pio das gaivotas como augúrio mas tentou não desviar o foco da silhueta que se aproximava na paisagem.Murilo prosseguiu:
- “E assim cheguei ao DNA da pessoa em que me tornei durante toda esta a caminhada: sou poeta de nascença, ser poeta é uma doença de que não temo, poderei morrer feliz. A poesia é a alma da Literatura e a Literatura é o motor da criação.Só espero poder continuar a tocar as pessoas, as próximas e aquelas que estão longe”.
- Já tocas.Com uma espécie de varinha mágica que faz despertar, encorajar e continuar com as suas pequenas grandes lutas.
- “ Espero que meu trabalho, seja com a palavra seja com a imagem, se torne condão que faça da penumbra que nos rodeia um facho delicado de luz. Não fará sentido aposentar-me da minha antiga profissão e não ver dela surgir o poeta que se esmera em agir além do plantão. Como o verme que nasce dentro do fruto e dá sinal de que já está maduro e cairá por terra, dado que é tempo de cair para nela decantar-se em húmus, eu dei a passagem ao poeta – este homem que aceito ser e que nas horas vagas se delicia com o aroma do café na chávena pensando nas flores do cafezal e fotografa o pólen pensando tratar-se de borboletas. Não sei se fui claro, a linguagem dita exata cada vez me enfada e entedia mais. Mas se eu soubesse traduzir o que sinto e o que penso não seria quem sou mas outra pessoa que não pretendo ser”.
O silêncio instalou-se por momentos.Só se ouvia o mar em fundo.
Talvez Rimbaud, Baudelaire e Lord Byron observassem divertidos das nuvens.
- Acalmaste a minha preocupação.Não agiste por mero impulso.Sabes o que estás a fazer.És o rei das tuas escolhas.Nenhum homem pode desejar mais do que isso!
Mário avaliou aquela personagem extraordinária.Que se lançava de corpo e alma a uma ideia, se entregava todo a um projecto, escrevia divinamente, fotografava tudo ao pormenor, a cornija, a gota de água, o convívio com os companheiros, o sol, a lua, as pernas e os pés depois de dar uma queca, o universo, o nada e o infinito e sorriu extasiado.
- Foi uma sorte ter-te conhecido.
-Já disseste isso uma vez.
- Estou a repetir-me, sei.Vê antes como regar a planta…
-Ah!
Chegaram finalmente ao ponto de encontro e ficaram frente a frente com as câmaras apontadas e havia um onda de confiança e afecto pronta a enrodilhá-los.
- Gostaria de te apertar a mão ou abraçar-te como agradecimento – pensou Mário mas em vez disso, disse.
- Obrigado.Tchau!Não desapareças… nunca.
- Adeus, caro navegante. Cuida-te.
E desligaram.