OS REAIS E OS IMAGINÁRIOS

Às oito era professor e dava uma Aula e a certa altura, o seu espírito alheou-se por completo e os jovens que se tratavam entre si por “manos” numa falsa camaradagem transformavam-se em macacos mudos e já não o incomodavam com a sua genuína falta de modos.

Uma hora depois saía quase num rompante,não sem ajeitar a gravata, pegar na pasta e atravessar uma pequena grande multidão que enchia os corredores e descia a escada, livre, como se fosse viajar.Na mente.

E o sol e os vidros refractavam reflexos,luzes e ele imaginava a colega de Inglês muito requebrada e sensual, sem soutien e em cinto de ligas num número de abertura num musical mexicano, o vigilante mal encarado com chifres e dentes de elefante a escoicear no meio do pátio, a população de adolescentes transformados em esquilos ou em ratos e o ruído em música de fundo com piano e violino e uma orquestra a tocar infinitamente.

“Não vás ao médico não…parece esquizofrenia,um comportamento estranho, bipolar,ou então simples maluqueira,que desvario!”

Mário estava e não estava lá, ressentia-se da incongruência naquela sociedade de formigas aparentemente organizada e presa numa teia de regulamentos internos e externos.

“ Que se lixe a taça…vou até ao portão fumar um cigarro.A minha reputação volta a descer dez pontos percentuais, já sei.C’est la vie!”

E atravessava os pátios, cruzava-se com os outros”Bom dia…olá…estás bom?...Viva…”

Mais tarde no computador, entrava pelo écran e perdia-se nas news e nas breaking news e nos milhares de itens, trazidos em revoada ao sabor de um toque.Como uma macumba.

A manhã passava e ele regressava a casa.No caminho concentrava-se no trânsito, essas corridas famintas que os homens faziam entre si e que eram muitas vezes perigosas e mortais.Fatais.

Diziam-lhe:

- Passas a vida a andar de carro.Vai para um ginásio, corre que nem um celerado ou nada como se fosses um fugitivo que anseia por chegar à outra margem.Esforça-te.Faz de conta que vais tirar o pai da fôrca.Estafa-te.Já te inscreveste?

Alterar hábitos.Inverter a marcha inexorável do tempo.Mudar de linha.

Almoçou com a mulher num restaurante agradável perto de casa.

- Dr, aceita um pouco mais de vinho?

-Sim, se faz favor.

A cena burguesa.

A sala estava cheia.Os clientes conversavam enquanto degustavam.De súbito, parecia uma grande capoeira em que as galinhas não páram de cacarejar enquanto debicam com voracidade os grãos de milho.

-Em que é que estás a pensar?

-Eu?Em nada.Literalmente.Mergulhei no vazio.

-Ah!Que engraçadinho!

E mais tarde dormia a sesta, com pesadelos, virava-se na cama, a boca amargava-lhe e Lucifer o gato trepou-lhe para o peito e miou com um som agudo mesmo em cima dele.Ele acordou assustado.

- Não consigo dormir mais.Vou buscar um cálice.Emborcar um dedo de whisky.

Pensou que apesar da retoma e da recuperação tão alardeada pelo Poder, não se podia atravessar uma rua sem se ser abordado por alguém em dificuldades.A pedir dinheiro, cigarros, qualquer coisa.Triste sinal dos tempos.

Mas no bairro o ambiente era quase cosmopolita, uma manta de retalhos,como num célebre melting pot…chineses, albaneses, africanos, franceses, ingleses, espanhois, italianos, de leste e de oeste, de África e da América.Torre de Babel.Ele descortinava tropas invasoras, soldados, as cruzadas, armas , uma hecatombe,os despojos e o saque.Os refugiados em debandada eram reais.As imagens passavam na televisão, antes dos anúncios de publicidade.pelo menos isso era verdade.

Maria José, uma antiga colega de empresa telefonou a dizer mal de tudo e de todos genericamente.Rol de Incompetentes, ladrões e libertinos.Ele ouve-a mas não a escuta, quase perdido num horizonte de conversas cruzadas.Manteve uma presença apagada apenas com monossílabos.Mmmm…mmmmm….huummm…

Mais chamadas sucederam.De acordo com uma lista misteriosa.

Saiu para a noite.Encontrou-se com um amigo dos tempos da universidade.Foram ao Teatro ver “Os emigrantes” de um autor polaco, perito em retratar a decadência e a crueldade.

Jantaram depois da meia noite num botequim meio passado, conversaram sobre Arte, os pacientes dele, os constrangimentos financeiros.Observaram a lua em quarto minguante enquanto fumavam cá fora.

E ele levita e voa raso pela arquitectura losangonal do velho mercado na praça à sua frente.Voando até a uma altura considerável.Aterra com suavidade.

De novo recolhido, em casa, seguiu um filme duro e trágico no primeiro canal “Manchester by the sea”. Das molduras de retratos espalhados pelo aposento,os antepassados figuravam e de repente tomaram vida apesar de estarem, há muito tempo, mortos - os avôs a alvitrar:

- Devias ir deitar-te, Mário.Já são horas, rapaz.Quatro da manhã.

O tio, morto há décadas piscou-lhe o olho.

- Hoje já é sábado.Faz só o que o teu coração mandar.Eles sempre foram uns tristes.

O seu ego não está em cima, desagrega-se, espalha-se pela sala e ele já mal descortina o que é real e o que é imaginário.

A mulher apareceu à porta, estremunhada:

-Ainda estás de pé?Não te vens deitar?Acordei cheia de sede.

Ele acenou em silêncio e pensou:

“Amanhã, vou recomeçar… a automotivar-me …tenho que inventar urgentemente algo interessante para fazer”.

Os seus fantasmas compassivos concordaram com um vago assentimento.Ele abriu a janela para a noite, de par em par e sentiu o frio a entrar e a invadir a sala, confrangeu-se com um arrepio, respirou, suspirou…e conformou-se.Uma infelicidade vulgar.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 10/08/2019
Código do texto: T6716852
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