AQUI E ALÉM
Levantou-se de madrugada.Saiu pela rua vazia e encolheu-se com o frio cortante daquela futura manhã gelada de Inverno.Iniciou a viagem determinado e apreensivo.Enquanto atravessava a cidade ainda sem gente e trânsito e saiu em direcção à Ponte pensou que tudo aquilo talvez não passasse de um disparate, de uma fraqueza mas estava disposto a arriscar.
Já tinha tentado tudo, trabalhado o mais que pudera e o melhor que sabia e apesar das habilitações, provas dadas e até alguns êxitos conseguidos,sentia-se preso a afogar-se num pantâno - não conseguia nunca mais ver o seu trabalho reconhecido.
A estrada advinhava-se longa e escura e só daí a uma hora a aurora devia raiar timída e renitente,marcando o compasso daquele dia marcado pelo cinzento e negro e pelos rigores do clima.
Ele fazia questão de chegar a horas à consulta marcada para as onze da manhã nos arredores de uma cidade que distava mais de trezentos kilómetros da capital em que vivia.
Reviu a sua vida num filme rápido.Trinta e cinco anos de busca insana de uma felicidade inexistente – aliás o que era isso, felicidade, senão uma palavra vaga e vagamente definível?
Começou a chover e Ricardo sentiu que tinha que abrandar por uma questão de segurança.Avivou-se um temporal teimoso até metade do caminho e de súbito tudo pareceu serenar e um raio de sol tímido mas persistente insistiu em conduzi-lo, reflectindo-se no capot do automóvel.
Passaram-se três horas e ele chegou finalmente a Portalegre.Pediu orientação sobre o bairro que constava da morada apontada numa folha de papel.Apressou-se a seguir o caminho.
À hora subiu as escadas de um prédio incaractererístico e bateu à porta do andar x.
Genoveva veio abrir:
- Bom Dia.É o marido da Dona Marta?
- Sou.
- Por favor, entre.O meu marido já saiu para trabalhar, a nossa filha já está na escola e eu hoje não vou ao Serviço.Estamos à vontade.Por aqui!
Ele seguiu a senhora, uma mulher nova com um ar sereno e em que nada parecia revelar algum poder maior ou especial.
A sala era pequena, instalaram-se à volta de uma mesa redonda com pé de galo.
- Ora diga.Conte-me para ver se o posso ajudar.
- Eu …estou …sem saber muito bem o que fazer…
E desfiou a sua história de insucesso e falta de futuro profissional, tendo o cuidado de comentar que o seu problema que tão duramente o atirava para uma diminuição do ego e um atoleiro depressivo era diminuto se comparado com tantas vidas trágicas, tantos dramas e tantas pessoas a debaterem-se com problemas muito mais graves.
Genoveva então pegou-lhe na mão com extrema delicadeza , fechou os olhos e rezou uma oração que ele não conseguiu reconstituir após.
- Tem um encosto.Que o impede de prosperar, avançar…Alguém que morreu há muito tempo, um homem aterrorizado por o deixar sem protecção e que procurou então contê-lo para sempre num abraço protector que não o deixa desprender-se nem libertar-se.
A sala transformou-se num quarto conhecido e um homem forte agonizava na cama.
À sua volta rostos familiares, uma criada nova e cheia de medo e de lado uma janela em que se divisava um dia de Verão muito triste.
- É o fim.Vou morrer.Tragam-me o menino.
Alguém foi buscar um bebé de um ano por fazer, envolto em roupa leve, vestido com um palhacinho.
Ricardo estremeceu e as lágrimas brotaram-lhe com o choque.Ele olhou para a Médium à sua frente:
- O bebé sou eu e o homem moribundo o meu avô.
Viu nitidamente em alta definição, que o homem fez um esforço imenso para se erguer e tomar a criança mas não conseguiu e alguém chegou-lhe o toutiço cheio de caracóis ao seu rosto que ele apenas beijou e tentou abençoar na aflição do fim.
A imagem desvaneceu-se e Genoveva prosseguiu:
- Ele morreu numa grande angústia porque sabia que deixava a família inapta para cuidar de uma criatura frágil como um bebé de meses.Sabia que o filho, um rapaz de vinte e quatro anos não estava preparado para sustentar a família e que a mulher e a nora sempre tinham estado dependentes economicamente dele próprio que estava a despedir-se da vida.Haveriam de brigar os três,de se culpar uns aos outros pelas inúmeras dificuldades por que haveriam de passar e todo o Amor escorreria como água a desaparecer num ralo.
Ricardo reconheceu a veracidade , os factos e ficou arrepiado.Um longo momento em que a senhora parecia estar a captar sinais do Além instalou-se pesado na saleta.
- Ele diz-me que cumpra uma promessa que ele não pôde cumprir porque entretanto adoeceu.
Com uma nitidez e precisão de espantar, ela contou-lhe que aquele homem, o seu avô, se afligira quando a sua mulher tivera que se submeter a uma operação com risco de ser amputada uma perna e que fizera a promessa se ela se salvasse.Ela superou o problema e ele preocupado com a questão dela por causa das mulheres que nos anos cinquenta enviuvavam resolveu fazer um seguro para proteger a sua, em caso de.Durante os exames médicos que reprovaram a celebração do contrato descobriu aterrado que estava doente,apenas com alguns meses de vida.
Ricardo achou assombrosa a narrativa, impressionante tudo aquilo,e sentiu como um soco brutal que lhe tivessem desferido em cheio na cara, depois de agradecer e pagar a Genoveva que se apressou a explicar:
-Não digo preço.O senhor dá o que quiser.
Regressou a Lisboa perturbado, foi directo ter com a Avó envelhecida que lhe confirmou a história que ele fora desenterrar tão longe, guiou até ao santuário a norte de Lisboa, comprou a cera, cumpriu a promessa em falta e depois voltou à sua rotina voluntariamente esquecido dos motivos que o tinham levado a empreender aquela tão estranha viagem.
Na Primavera, fizeram-lhe um convite para ir trabalhar para outro sítio com uma categoria profissional superior e a sua carreira aos poucos foi evoluindo, permitindo-lhe sair do atoleiro em que se encontrava havia anos.
Passou-se tempo.Convulsões, acontecimentos, catástrofes, a avó, o pai e a mãe todos morreram.Ele sobreviveu e sempre gostou de ser o último a deitar-se.A noite inunda a casa como um mar silencioso e ele aprecia sentar-se na sala a tomar uma bebida sem música nem televisão ligadas.Às vezes as cenas do passado desfilam à frente dos seus olhos,vê transido fantasmas amigáveis passarem à sua frente sem o verem, espíritos de mortos acenarem-lhe do tecto e as horas ressoam no relógio enorme de pé alto e fazem-no voltar à dimensão real.
Num sinal de respeito ele costuma sem dificuldade reconhecer-se como um homem maduro, vivido,definitivamente não santo e indubitavelmente pecador a que não são admissíveis fantasias nem visões e teme esta verdade dura que se lhe depara.
Que não há princípio nem fim, que o tempo estaria certamente mal analisado e definido e que talvez não haja sequer aqui e além mas uma simples e demorada recta incompreensível, uma estrada em que todos vão sendo abatidos ao longo do caminho, fragmentos irrisórios e lógica absurda sem que haja piedade que se compadeça nem ninguém que esclareça tal mistério.A oração vem-lhe à memória.
- Senhor, tende piedade de nós!
E ele constata:
- A vida corre, as horas passam e às vezes a luz não chega.