A REDESCOBERTA DO BRASIL
inspirado em um sonho de Axel Guedes
No terceiro dia após o Juízo, começou a reconstrução. A Intendente se fez bastante ocupada, organizando minuciosamente as estruturas causais que dariam origem aos novos compostos astrais e corpos físicos. Até que chegou a tarefa mais apreciada, que era conduzir a descida das almas-arquétipo que forneceriam os moldes para os futuros viventes daquela terra.
A rampa foi montada às margens de uma praia outrora conhecida como Porto Seguro, lugar simbólico e apropriado para o início do recomeço. E assim vieram descendo as almas-arquétipo, novinhas em folha, cada qual representando uma possibilidade de ação ou ocupação humana.
A Intendente assistia, satisfeita, examinando item por item em sua lista. Foi quando notou uma alma-arquétipo que, tendo descido a rampa, foi para a beira do mar e lá ficou, isolada das outras, contemplando as ondas como se nada daquilo lhe dissesse respeito.
– Você está com algum problema? – perguntou a Intendente para a alma solitária, em tom amoroso. – Por que não está assumindo seu posto junto com as outras?
– Não sei para onde devo ir – respondeu a alma, acabrunhada. – Acho que não tem lugar para mim no novo esquema das coisas.
– Espere um pouco – disse a Intendente, consultando seus apontamentos. – Você é a alma do Político, não é mesmo?
– Sim, essa sou eu – concordou a alma.
A Intendente teve um gesto de comiseração.
– Mas olhe só para você. Não mudou nada desde o último ciclo. Como espera tomar parte de forma adequada nos dias vindouros?
– Não entendo – disse a alma, parecendo confusa. – Como eu poderia mudar?
Pacientemente, a Intendente apontou algumas almas-arquétipo que ainda desciam a rampa.
– Observe como todas estão transformadas, aprimoradas de alguma forma. Veja o Médico, por exemplo. Está aprendendo que o ser humano é uma unidade de energia psicofísica, e que todas as doenças têm sua origem na alma. Ou então o Professor, que está descendo ao seu lado: já sabe que ensinar é sobretudo aprender a ensinar e que nenhuma lição é melhor que o próprio exemplo. Logo atrás vem o Sacerdote, que agora entende que a sua missão é ajudar as pessoas a buscarem dentro de si mesmas o que é comum a todas.
Após uma pausa, a Intendente acrescentou, suspirando:
– E você, no entanto...
– O que é que tem?
– Continua do mesmo jeito de antes, interessada apenas em seu próprio benefício, em tirar vantagem de todas as situações e adquirir poder e influência sobre os outros.
A alma do Político pareceu refletir por alguns instantes. Então disse, tristemente:
– Não vejo como eu poderia me modificar.
– Como assim?
– Todos se aprimoraram em suas áreas, é certo. Mas na área que eu represento não houve progresso. O Político dentro de cada um continua querendo levar vantagem em tudo. Apesar de seus avanços individuais, o Médico, o Sacerdote e o Professor, de modo geral, continuam visando a melhoria de sua própria situação, acima do bem estar da coletividade. Sendo assim, como eu poderia evoluir? Continuo sendo quem sou, porque ninguém transformou minha parcela dentro de si.
A Intendente fitou em silêncio a alma do Político por um bom tempo. Por fim, com um sorriso resignado, disse em voz altissonante:
– Todas as almas-arquétipo devem retornar agora mesmo para a rampa.
Suspirando mais uma vez, falou baixinho, de si para si:
– De volta para a prancheta.
por Fabio Shiva