O Mascate

Tuntum, cidade de nome onomatopeico no coração do Brasil, estava mergulhada no coronelismo na primeira metade do século XX. O mais poderoso coronel era o excelentíssimo senhor Altamirano Alcântara. Coronel Alcântara era tão poderoso quanto malvado, porém sua esposa era ainda pior, dizem que Dona Quitéria Alcântara possuía um rosário feito com orelhas humanas. Nesta época, surgiu na cidade um Mascate, coisa rara em Tuntum, provavelmente o vendedor estava indo a Lavras, lugar onde se faz bons negócios, e no caminho acabou por parar na cidadezinha. O Mascate era um sujeito elegante, de bigodes pontudos e terno da moda. Entre seus produtos, vendia um chá que fazia homem impotente virar animal na cama. O Mascate parou na praça do Centro, ao lado do Bar de Seu Arlindo, abriu maleta, e começou a tirar tudo que se pode imaginar de dentro dela: vassouras, tônicos, bíblias, garrafas de xaropes, saboneteiras, couro, facas, utensílios de higiene, panelas, chapéus, gravatas de seda, uma rede…

Uma pequena multidão se colocou ao redor do Mascate, não tanto pelos produtos que vendia, que pouco interessavam aos tutuenses, e sim por causa de sua incrível maleta onde cabia de tudo nesse mundo. Bartolomeu, filho do velho Antônio Leiteiro, troçando o vendedor, disse:

-Ora, homi. Queru ver ocê tirá uma canoa aí de dentru!

E o Mascate tirou uma enorme canoa de dentro da maleta.

Maria Cecília, a lavadeira, gritou:

-Agora queru ver ocê tirá um advérbio dessa maleta!

E o Mascate, com um sorriso no rosto, foi logo tirando um anticonstitucionalissimamente da maleta.

-Tire uma loira!

E o Mascate metia o braço na maleta, e puxava pelo pé uma loira que parecia ter vindo diretamente das gélidas terras da Noruega!

Durante todo o dia, os tuntuenses falavam algo, e o Mascate tirava da maleta, até que dois homens de longas barbas negras, foram prosear com o vendedor:

-Pois olhe, essa sua maleta é mesmo impressionante, e o Coronel Alcântara já está sabendo disso. Pois veja, estes dois sacos de arroz e esses cinco de farinha – apontava para os sacos deixados no chão – o Coronel mandou você guardar tudo na tua maleta e ir até Mangabeira do Norte, que lá tem gente para receber a mercadoria.

O Mascate deu uma boa olhada na dupla, e disse:

-Pode esquecer, que eu não trabalho para coronel nenhum. Na minha maleta essas porcarias não entram!

Os homens, espantados, responderam:

-Mas você é louco?! Está desobedecendo ao grande Coronel Altamirano Alcântara! O melhor que você pode fazer é abandonar suas coisas aí mesmo e dar no pé antes que o Coronel fique sabendo de tua insolência!

O Mascate, sem se amedrontar, respondeu:

-Pois diga a este coronel de merda, que eu vou tomar três cervejas aqui no bar. TRÊS! Quero ver se este tal Alcântara tem os culhões de aparecer aqui para me incomodar. Se aparecer vai levar chumbo!

Dizendo isso, o Mascate foi metendo a mão na maleta, tirando de dentro uma enorme carabina.

-Está vendo isto? Com essa matei muita gente lá no Paraná, naqueles tempos eu era pior que o Diabo, mas um velho bondoso, querendo me tirar do mundo da maldade, deu-me esta maleta mágica para que eu pudesse ganhar a vida honestamente. Jurei-lhe viver direito, mas abro uma exceção para esse coronelzinho arrogante. Vou tomar três cervejas e quero ver este Alcântara aparecer!

O Mascate abandonou os dois homens e foi ao Bar de Seu Arlindo, escolheu uma cadeira, sentou-se. Pediu a primeira cerveja. O dono do bar serviu-lhe.

Os clientes observavam, apavorados, o Mascate acompanhado de sua carabina, bebendo tranquilamente.

-Outra cerveja. - disse o Mascate.

Arlindo fez o sinal-da-cruz e levou outra cerveja. O ar estava denso, podia-se cortá-lo com uma faca. Escutou-se um barulho, imaginaram que fosse o Coronel Alcântara. É ele? Não, nem sinal do Coronel, e o Mascate terminava sua segunda cerveja, e antes mesmo de pedir, Seu Arlindo já lhe trazia a terceira garrafa.

O Vendedor tomou um gole, e afastou o copo. Observava o líquido dourado, a espuma branca, enquanto acariciava sua carabina.

O Coronel apareceria justificando sua fama de mau? Daria um corretivo no Mascate? Muitos já haviam testemunhado a violência de Alcântara, que degolou o pobre Betinho, só porque este não tirou o chapéu quando o Coronel passou. Não foi para desafiar, o caso era que o infeliz do Betinho era tão desligado que certa vez acabou colocando as cuecas por cima das calças. Não importa, cabeça de um lado, corpo pro outro.

-Está vendo essa carabina? - o Vendedor parecia falar consigo mesmo – o nome dela é Winchester, nasceu lá nos Estados Unidos, por lá usam esta belezinha para matar índios. Sempre quis ir aos Estados Unidos, ter um rancho e matar índios. Mas..não sei...e se pensarem que eu sou índio?

O Mascate ergueu o copo como se fosse um troféu, deu uma gargalhada de ébrio, bebeu o que restava. Pagou Seu Arlindo, e caminhando sem pressa, com passinhos curtos, foi até a praça, meteu suas mercadorias na maleta, e voltando-se aos clientes que o observavam de dentro do bar, disse:

-Esse merda desse Alcântara é um frouxo!

O Mascate Paranaense deixou Tuntum para nunca mais regressar.

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Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 10/07/2019
Reeditado em 05/04/2020
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