O Ensandecido


Na calçada um menino brincava de ver as horas através da sombra. Feito o círculo, colocou um pauzinho bem no centro. Tinha certeza que o pauzinho ocupava o centro do círculo: havia medido o diâmetro com um cordão, depois dobrou ao meio e colocando o cordão dobrado em uma borda, seu final ficava exatamente no centro.

Mas o pauzinho não projetava nenhuma sombra, por que a experiência não deu certo? pensava o garoto de oito anos de idade. Mesmo assim, ele permanecia de cócoras olhando fixamente para seu suposto relógio solar.

O firmamento despido de sua profundidade, intensamente em índigo, a rua era de paralelepípedos, assim como as sarjetas. As casas se misturavam com lojas de roupas, mercearias, açougues, padarias, alfaiatarias, uma agência do correio. Todos os tipos de comércio se misturavam, intercalados ou não com as residências familiares.

Em frente a agência do correio, estava um homem sentado em um caixote de madeira: chapéu branco, sapato muito gasto, porém muito bem engraxado, meias pretas, calça de linho branco, camisa branca com uma gravatinha preta que denunciava ser de longa data.

Armado com um bloquinho de papel, vez ou outra, alguém aproximava e lhe falava a boca miúda, quase encostando os lábios no pé do ouvido. Então, o homem do caixote se dirigia até a entrada de um beco, com a outra pessoa no seu encalço. Não demoravam, aquele que o procurou, saia do beco com um pedacinho de papel nas mãos e com possíveis boas novas num futuro próximo. O semblante revelava a todos.

Senhor Malaquias, dono do açougue, um sujeito muito religioso, temperamento intempestivo, às vezes, meio bonachão, assim dizia sua esposa, dona Zeferina, mulher sorridente, entrementes, sempre escondia seu sorriso largo com as duas mãos. Dentes perfeitos, beiços fartos e amicíssima do padre Nicolau.

Apesar do calor, o vai e vem das pessoas, tudo muito intenso nas duas calçadas, as pessoas não se mostravam apressadas, mas o passo não era procrastinado como se estivessem passeando sem destino.

O açougue ficava ao lado da padaria e o correio na outra calçada em frente. Neste local, foi instalado um semáforo, em razão do trânsito intenso naquele local pelos pedestres. Mais de 50% das pessoas, sempre, sempre mesmo, saia do correio e seguia para a padaria ou para a casa de carne, ou vise versa.

A gerente do correio, uma advogada na casa dos 40 anos de idade, solteira, pernas bem torneadas, braços fortes, dedos das mãos eram longos e finos, delicados como de uma pianista profissional, só usava saia preta abaixo dos joelhos e blusa cor grená: a gola alta, cor anil, abotoada até próximo ao queixo. Corria um buchicho que Adélia, a gerente do correio, era feminista radical. Uma espiã russa disfarçada.

A filha do senhor Nicolau dono da padaria, era ativista exagerada, as paredes das casas e dos comércio assim falavam. Eloá, conhecida por ‘a louca’, fazia parte dos movimentos sindicais, sociais... Estava sempre usando coturno, boina e fumando um cigarrinho verde fétido feito à mão. Gostava de saber da sua fama que cultivavam nas redondezas, ela acreditava que ser temida é dez vez melhor do que ser respeitada.

Fugêncio, pastor de umaigreja evangélica, gordo, baixo, cabelos anelados, seu paletó verde água, estava sempre amarrotado e encardido, principalmente nas bordas das mangas e na barra das calças.

Ao pé do semáforo, dia sim dia não, Fugêncio lia um trecho da bíblia e dava esclarecimento da passagem lida. Entrementes, quando Eloá, a louca, aparecia, o pastor seguia para direção oposta. Acreditava que o melhor era evitá-la. A pessoa que calçava coturnos e usava boina com estrelinha vermelha na cabeça, lhe trazia maus presságios, surta fácil, não duvidava. Eloá era uma guerrilheira atéia, violenta, melhor esquivar-se desse tipo de gente. Eles têm rompantes sinistros, não são pessoas arrazoadas. O melhor era evitá-la como um felino, sair sem ser percebido.

O semáforo acendeu a luz amarela, depois de cinco segundos foi a vez da luz vermelha acender. A amarela apagou no mesmo instante que a outra cor ascendera. A rua era de mão dupla. Os carros, as motos, as bicicletas, uma carroça com um cavalo com cara de poucos amigos e um caminhão pararam, um pouco de cada lado.

Os pedestres atravessavam a rua sob uma lombada larga, pintada com a sequência das cores de uma zebra.

Ao pé do semáforo, apoiado com as costas no poste do lado do correio, ficava o cego Jeremias pedindo esmola. Do outro lado, no mesmo alinhamento do cego, permanecia um cadeirante na divisa da calçada com a lombada, mitigando um óbolo, uma graça do senhor manifestada em alguns dos pedestres que ali transitavam. Era o senhor Bartolomeu.

Havia um sobrado na rua atrás do correio, entrementes, dava-se a ilusão que ele ficava acima do correio, como se aquele tivesse uma inclinação tão absurda, que fazia parte da mesma rua do correio, da padaria ou do açougue. Uma edificação de seis andares em que todos chamavam-no de sobrado.

No sexto andar, havia uma cobertura. A pessoa que residia era amante da solidão, dos livros, dos filmes. Observava o vai e vem das pessoas sem ser percebido, adorava as almas humanas, mas desde que essas se mantivessem a uma boa e longa distância.

O olhar, um labirinto com suas setas que revela o coração das pessoas na essência, os gestos, deixa de modo indelével a hipocrisia na sua plenitude. A sociedade se compõe de bandos de embusteiros, mercenários, vigaristas ocos, sem destinos com desejos fúteis, mesquinhos. A hipocrisia desliza na saliva viscosa, elástica e continuada na boca dos canalhas escondidos dentro de vestimentas sem graça e estúpidas. Para o observador do sexto andar, o homem se bestializara.

Observava e arrematava, como as pessoas vivem em função do outro. O agir correto do homem só é verdadeiro com a aprovação do outro, da aprovação do grupo da faculdade, do trabalho, da família.  Poderia ser de um ator de novelas, ou do cinema, ou cantor, qualquer um determinava a verdade, menos o próprio homem na sua individualidade. Seria uma pobreza de espírito, ou um espírito pobre?

Quantas máscaras, quantos trejeitos, quantas tolerâncias! Um mesmo ser com uma máscara no trabalho, outra na escola, uma terceira com o amante, uma quarta com o amigo fiel, múltiplas com a lei. Com tantas máscaras para um único ser, numa única sociedade que torna-se múltipla e multiplica os seres a viver em várias sociedades imaginárias.

O espelho lhe nega uma única imagem para se revelar numa sociedade podre, vazia e bizarra. Os pouquíssimos que vivem senhores de suas próprias regras, são odiados pela maioria absurda, que vive sob as regras dos outros, dos grupos. Odeiam tanto essas pessoas que vivem sua própria liberdade, que lhe desejam a morte.

Cabelos longos de cor amarelo muito claro, tom pastel mal frito, algumas rajadas brancas, nariz longo e fino, olhos verdes grandes e arredondados, orelhas pequenas, a pele do rosto docemente lisa, mas o conjunto revela uma mulher com mais de sessenta anos, talvez oitenta. Já? Pode ser! Magra, muito magra. Quando em pé, a coluna sempre ereta, alterosa. Os seios não são volumosos mas também não são escassos, combina com o tronco, com os braços e com as pernas.

Gosta de andar. Anda devagar, bem devagarinho, sem pressa. Porque a pressa? Se sempre há de chegar.  Prefere caminhar pela sala, ora pelas paredes, ora pelo teto da sala, ora pelos tetos da alcova.

Quando passeia pela casa desafiando a gravidade, tem os melhores momentos: não da vida, mas daquele instante, daquelas imagens que quando voltar a vigília, irá perdê-las para sempre.  Estas permanecerão na eternidade, mas não importa aonde, elas estão lá. Mas quem as vê, também não quer mais réplicas. Para que refazer e saber aonde estão?  Um lampejo de uma risada falsa, um dar de ombros, cruzar as pernas, apertar as mãos entre as pernas, um virar de lado, um olhar para baixo, para cima, prefere andar pelas paredes.

Os livros sempre estão nas prateleiras, por ordem de autores.  No setor de cada autor a regra é a ordem alfabética dos títulos. A sala é uma biblioteca, muitos, muitos livros, uma mesa com um computador, um caderno, dois lápis, três canetas azuis e vermelhas, quatro marca-textos.

A cozinha tem o necessário: uma panela, um prato, um garfo, uma colher, uma faca de pão, uma de mesa, outra para cortes muito bem amolada. O banheiro muito grande, não tem toalha de rosto, apenas duas de banho.

O quarto tem uma cama, não tem travesseiro. Não tem cômoda, não tem guarda roupas. Tudo é acondicionado dentro de caixas perfiladas em linha reta no chão.

Seria uma anciã obsoleta, habitando um gruta, uma caverna pré-histórica atualmente? Com seus questionamentos já caducos e antiquados? Seus pensamentos borboleteavam meditabundos, preenchiam seus dias, suas semanas, seus meses, essa eternidade que a afligia. Esse vagar em tantos infinitos lhe angustiava, mas com um sabor agridoce bom nos lábios.

Um aperto no colo do ventre tão forte lhe forçava manter os braços abertos.  Banhava o corpo em lágrimas que se transformavam em neve, que deslizavam queimando suas dores. Suas chagas eram verdadeiros icebergs congelados, seus sofrimentos metafísicos sem fim, os absurdos humanos.

Por maiores que fossem essas trevas de tristeza, contemplava este quadro que surgia diante de seus olhos, preenchia as cores deste nos mínimos detalhes. Ser e estar, se intercalavam nesse infindo das horas. O brilho da angústia dia-após-dia lhe mostrava uma senda com muita clareza a sua frente.

As luzes do palco esvaíram, nuvens pesadas se arrastavam em direção à cidade. A pressa não faz parte do movimento das nuvens, ir e vir, aparecer e desaparecer, são indiferentes para o espírito delas. O tempo existe para os mortos, para os imóveis, os estáticos. Esses sim conhecem o tempo.

A gradação da luz do dia para a sombra da noite estacionou sobre a cidade, sobre os viventes que correm de lá para cá a todo instante nas ruas, avenidas e ruelas.

O frio não acompanhou as nuvens, preferiu seguir para outras paragens. A umidade caminhava abraçada as nuvens: desceu pouco, ninguém molhou, nada se umedeceu, nada mofou. Nuvem e umidade riam dos expectadores, riam dos viventes tolos que não podem dar um passo sequer livremente.

Bartolomeu, em sua cadeira de rodas, aceito por todos, deslocou para a calçada do cego Jeremias, este para a calçada do cadeirante. Seria um fato contingente? Um acaso entre deficientes em seus prepostos? O anoitecer ao meio dia seria a causa?

Quando os dois alcançaram exatamente a metade de seus destinos, alguém rasgou os dois pneus da cadeira de rodas com uma faca. Na sequência guardou a faca, jogou Bartolomeu no chão, tombou a cadeira, as rodas ficaram apontadas para a sombra que abraçava apaixonadamente pela cidade. Em seguida, deu uma bicuda na bengala do cego Jeremias, uma bofetada estrondosa na nuca jogou-o ao chão. Este caiu em cima do deficiente físico.

Cego e cadeirante por um momento, acreditavam que um terceiro estava lhes agredindo, todavia, se batiam mutuamente: unhadas, socos de um, pontapés do outro, Jeremias tateava com uma mão alucinadamente em busca de sua bengala equipada com m punhal. Bartolomeu, com uma mão segurava sua cadeira, como se fosse sua tábua de salvação. Escondido no coxim havia um revolver. Com a outra mão defendia e atacava absurdamente o imaginário inimigo.
A agressora gritou ferozmente:

-- Vão trabalhar seus vagabundos, pilantras, escória, imprestáveis desgraçados que não merecem estar vivos!

Uma balburdia muito bem organizada tomou conta da rua: gritos, palavrões, pachouchadas de vários níveis, agressões físicas e morais reinavam ao som das gargalhadas do destino. O agressor ensandecido seguiu até o moleque que estava de cócoras, chutou a distração da criatura e gritou:

-- moleque burro, vá brincar com o destino, ou quer se tornar mais um vigarista errante dessa sociedade estúpida, amorfa e delinquente com suas parvoíces sobre o tempo?

-- Não estou brincando com o tempo, mas com as sombras.
-- As sombras! O que são as sombras? O que um imaturo sabe sobre as sombras?

-- Araqiel, Araqiel! Por que busca a luz? O que faria com ela? Por que a quer? sabes que já as têm!

-- Como sabes meu nome, ordinário Maldito?

-- Seu nome está na mente, nos corações, nos desejos, nas alegrias e no adágio dos homens que recebeste para seu destino por toda a eternidade.  Você sempre vai velá-los.

-- Sabes que surgirá sempre no despertar dos dias, refugiarás nas sombras da noite, chorarás como sísifo, como prometeu, seu destino lhe dá a liberdade entre o dia e a noite, o fechar das pálpebras e o despertar da vigília.

-- Araqiel, por que deixastes sua cobertura? Por que abandonastes suas angústias, tristezas, as suas dores e desgraças sozinhas dentro daquele apartamento amaldiçoado. Agora órfãs com suas janelas fechadas, suas portas cerradas. Por que não as trouxeste?

Araqiel com uma saia branca muito curta de cetim, com uma blusa que cobria os seios, mas não chegava nem perto do umbigo. Sapato vermelho de salto alto, modelo Luiz XV. Seus cabelos muito bem hidratados, seu olhar vagava indiferente na multidão que lhe cercava.

A multidão aumentava mais e mais. A indignação, a perplexidade de quase todos era visível. As perguntas se misturavam, mas eram sempre a mesma: por que a senhora agrediu aqueles pobres deficientes? Eles são uns coitados.

Bartolomeu chorava copiosamente. Olhava para a cadeira, depois para as pessoas, voltava a olhar para a cadeira e murmurava baixo, mas o suficiente para chegar suas lamentações até à plateia:

-- Por que meu bom Deus? Me prendestes numa cadeira de rodas, a ser ultrajado, humilhado e ofendido com palavras tão rudes dessa mulher?

-- Seu sem vergonha e dissimulado, acredita mesmo que não sei onde esconde seu carro? Sua conta bancária?  Suas casas de aluguéis? Seu preguiçoso seu pulha, esbravejou Araqiel.

-- A senhora vai pagar um terno novo, disse Jeremias. O cego lamentava ser um ser errante nesse mundo de maldades, impiedades que Deus lhe tirara seus meios de defesas.

-- Seu trastes, seu palhaço velhaco, acredita mesmo que vou trocar um terno velhíssimo que você usa para aterrorizar as pessoas e pegar o novo para vender? Seu avarento, mesquinho safado, explora a família para poupar dinheiro para si mesmo. Falou em bom tom Araqiel.

A multidão além de aumentar, algumas pessoas começaram a se exaltar com impropérios, com intensidade na contração dos músculos, com os nervos retesados.

Agora muitos já se dirigiam para a agressora como fossem zumbis, embebidos em suas indignações. Já não se satisfaziam com suas argumentações, agora queriam tocar na agressora, beber lhe o sangue, devorar sua carne, expor suas vísceras: o ódio se juntou à selvageria. A paixão humana se apresentava docilmente para Araqiel.

-- Legião de fariseus, onda de tartufos miseráveis. Afastem! Estais diante de suas próprias mentiras, falsidades, luxúrias, seu volúveis interesseiros! Não passam de malditos, mal-aventurados, horda de infelizes.

-- Todos vocês, vão rir e dar gargalhadas desses deficientes da alma. Os corpos deles estão plenos, odeiam a brevidade e sua fortuna, se negam para si mesmos. E vocês? vão fazer gracejos de tudo isso, vão aprazer-se, dar gargalhadas dizendo, coitado desse, coitado daquele. Entrementes, todos vocês, falange de refolhados, desfrutarão das desgraças dos seus semelhantes de almas em breve.

A criança passou entre as pessoas como se elas não estivessem lá, como se não houvesse uma amontoado de pessoas disputando cada milímetro para chegar até àquela senhora, que os olhava com um levíssimo sorriso e desleixo para todos. Segurou delicadamente a mão esquerda de Araqiel, com a mão direita segurou amavelmente as mão de Azrael, este tinha descido por um rapel que era invisível para a multidão. Passaram pela multidão como se seus corpos fossem gasosos ou pura energia.

Seguiram até o beco, sentaram-se próximos mas em círculo, fizeram surgir uma delicada e pequena fonte: a água jorrava ora de uma cor, ora com outra cor. A criança transmutou em Azbogah, uma mulher com uma espada em sua mão esquerda e com o livro do destino na mão direita.

-- Quantas vezes terei que lhe dizer Araqiel? Não exercerei o meu poder sobre você, não vivemos para os humanos, eles não fazem parte de nossas desejos, nossos poderes se limitam a quantos mundos forem povoados pela consciência deles, mas não sobre eles. Disse Azrael.

Azbogah voltara a ser a criança brincando com pauzinhos e uma ampulheta. Azrael transformara na água da fonte, para em seguida a água evaporar. Araqiel se levantou lentamente, segurou as mãos da criança, levou-a até o sobrado. Olhavam rindo da inocência do cego e do cadeirante que voltaram para seus pontos de mendigagem.

Azbogah dissipou as nuvens, devolveu a luz que o dia ainda tinha de crédito, se jogou do sobrado pela janela lateral piscando com o olho esquerdo e uma enorme gargalhada para Azrael. Aquela senhora que tinha sessenta ou oitenta anos, voltou a andar pelas paredes, um passo de cada vez.
 
 


Araqiel    - anjo com domínio e poder sobre a terra.
Azrael     - arcanjo da morte.
Azbogah - nome do alto anjo do julgamento.
 
 
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