“O Segundo Encontro”

Milton Pires

Imagine o caro leitor, apenas por um momento, uma dessas pequenas cidades que os colonizadores açorianos fundaram no interior do Rio Grande do Sul e que só não está parada no tempo porque o tempo não existe e a história da humanidade, como disse Voegelin, é um “eterno presente sob Deus”.

Não se tratava de uma noite chuvosa de inverno. O que tínhamos ali era uma mistura de muito frio e pouca chuva que se manifesta numa terceira coisa terrível chamada então de "umidade" – terror da mãe do guri que costumava dizer que "em noite assim nem mesmo um cachorro sai para rua” e drama de quem, ainda por cima, morava numa casa na frente de um lago.

O guri em questão, então com dez ou doze anos de idade, folheava as páginas da saudosa Enciclopédia Barsa quando tocou o telefone da casa. Era uma “chamada” para o pai.

O pai do guri era médico na pequena cidade e cada chamado para atender um paciente era uma aventura para o menino. Ele não acompanhava o pai por ter vontade de ser médico. O que o atraía era entrar em casas diferentes da sua. A profusão, o caleidoscópio de sons, a sinfonia de cores e a luminosidade dos novos cheiros eram, para o guri que não conhecia as teorias de Breuer nem os efeitos do haloperidol, um mundo sempre novo – por isso ele jamais recusava, mesmo nas “noites de cachorro” diagnosticadas pela mãe que não era médica, fazer companhia ao pai.

Nesta noite a casa do paciente, outro menino da idade do nosso herói, não reservava novidade nenhuma. Não havia livros, armários com navios em miniatura, não se notava a presença de cachorros chineses nem de aquários iluminados. O guri escolheu uma poltrona enorme, lembrança da fronteira com a Argentina trazida pelo avô da criança doente, fechou os olhos e, enquanto o pai examinava o pacientezinho, dormiu e começou a sonhar.

Sonhou que estava num bairro de Buenos Aires muito pobre, mas diferente de Maldonado, com esgoto a céu aberto no ano de 1910, mas que o cometa ainda não havia passado próximo à Terra – promessa que ele, cometa, invariavelmente cumpre até hoje a cada setenta e seis anos porque jamais foi eleito Presidente do Espaço Sideral e não tem promessas a serem violadas. Não é um estuprador da verdade.

Sonhou o guri que ele mesmo era argentino e que, num sábado pela manhã, foi convidado por um primo com mais dinheiro para visitar uma fazenda próxima cujo caminho mais curto podia ser percorrido pelo trem.

Chegaram na fazenda - assim me contaram os espíritos - naquelas horas em que o que permanece vivo nega-se a morrer e os mortos ainda não se fazem escutar. O cheiro do churrasco assando, cachorros latindo e o violão dedilhado no tango triste que encabula as putas e evoca, na consciência dos assassinos, este sentimento estranho que alguns chamam de remorso, apresentaram-se kantianamente ao guri na forma aperceptiva da percepção.

Nesse ambiente de farra e bravatas, de histórias de guerra que revelavam a resistência das mulheres e a ternura dos cavalos, o guri, projeto de filósofo aborrecido pelo mundo infantil dos adultos, aventurou-se casa grande adentro.

Caminhando por salas escuras, móveis europeus de couro e pesados livros cuja encadernação era tão severa que seriam capazes de constranger Aristóteles, o guri, de súbito, depara-se com enorme armário de vidro.

Dentro do armário as mais terríveis facas, elas mesmas retratos de uma argentina história. Eram Lembranças de 1810 e da Revolução de Maio que ensinou ao Rei de Espanha os limites de seus poderes transcendentais. Mesmerizado, sonâmbulo nas suas impressões em relação àquele “universo de los cutijos”, o guri foi despertado pela gritaria que começava lá fora. Iniciavam-se os acertos para o duelo. Depois do churrasco, do vinho e do carteado, duelos de faca eram o “final feliz” nas histórias daquele tempo.

Sim, digo que Maneco desafiou Duncan, sim! Digo que sua faca, aquela que tinha um gavião entalhado no cabo e que era infinitamente maior do que a escolhida por Duncan, fez, no coração do último, uma Calle Florida de um dia de outono.

Berros e gemidos, prenúncios de Las Locas de La Plaza de Mayo, foram escutados pelo guri que pensava, sozinho no meio de tudo aquilo - “engraçado, a mim me parece que as facas tinham vida própria...É como se tivessem contas para acertar sozinhas, contas que ficaram abertas em outras vidas..estranho como as pessoas se vão e as coisas ficam...”

O guri se acordou com o pai consolando a mãe do pequeno paciente que, diga-se de passagem, não tinha nada de grave. A mulher chorava a morte do próprio pai, falecido uns dias atrás na capital do Rio Grande do Sul. Morrera delirando, coitado. Dizia que pretendia voltar e tal promessa assustava a mulher, enfermeira formada no Brasil do Norte, esposa de um marido alcoólatra e, ainda assim, kardecista na forma exata possível – aquela em que não se precisa estudar nada a respeito da Doutrina.

Nem as coisas nem as pessoas, pensou o menino bocejando de sono e lembrando que tinha prova na escola pública marcada para o dia seguinte. O mundo sempre esteve (e vai estar) cheio de espíritos por toda parte.

À memória de Jorge Luís Borges

(1899-1986) que escreveu tudo isso

antes de nascer quando ele era um

anjo e ainda estava no Céu.

Porto Alegre, 24 de janeiro de 2019.

cardiopires
Enviado por cardiopires em 25/06/2019
Reeditado em 25/06/2019
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