MORTE EM LISBOA
Vivia-se perigosamente em meados dos anos trinta em Lisboa.
Pela sua mente passavam como um comboio rápido todos os flashes do passado: a memória da Rainha desvairada com o vestido manchado de sangue do Rei e do Princípe assassinados, a vitória da Maçonaria, os vivas à República, a Revolução sangrenta como manda a História, a anarquia, o caos, a falta de víveres, os assaltos constantes às mercearias, os golpes de Estado, as aparições misteriosas em Fátima, a grande Guerra e a derrota de La Lys que fez milhares de mortes.
Ele, um jovem, costumava voltar a casa devagar mas determinadamente do seu emprego modesto na Biblioteca Nacional sempre a olhar em frente, imerso em pensamentos no seu fato completo, gravata e colete.
Entretanto a loja de família fechara as portas, a mãe falecera subitamente e ele viu-se aos vinte anos só, no primeiro andar do prédio gélido e despido sem ninguém em pleno Campo Santana no centro da cidade.Quer dizer com ela.Com elas.Garrafas esguias de brandy, cognac, whisky e gin, o exército das bebidas fortes e bem dispostas.
Havia também a irmã gémea que casara com um campónio ambicioso que se tornara um gerente comercial de sucesso e o sobrinho criança mimada e loira, devotado desde pequeno a conjugar os verbos na primeira pessoa , completamente egocentrado.Mas a irmã estava longe, devotada aos afazeres de esposa com as suas duas criadas, a de dentro e a de fora, os seus cortes de tecido, os seus casacos de pele, a sua vida.
A Mãe tinha sido enterrada há um mês, ele voltava para a solidão fria e bebia pela noite, acordava com ressaca, arrastava-se sem sentir nem ver quando o sol brilhava ou a chuva caía.
Houve noites de insânia e vazio insuportáveis em que saíra já muito tocado e trouxera vagabundos para dentro de casa.Partilhara a garrafa com eles.Aquecia-lhes água para um banho quente.A solidão partilhada só aparentemente não doía tanto e ele vira-se a abraçar corpos estranhos para se aquecer , a beijar a boca de desconhecidos estendidos quase inconscientes, no chão sem nada em busca de um contato real, de uma sombra viva.
Há quanto tempo isso se passara?Entretanto,contraíra uma febre alta.Ouvia os vizinhos, passos ao longe nas escadas e sentia-se perdido e exangue.Não comia nada não falava com ninguém há dias.Custava-lhe muito respirar.Apanhara com certeza uma pneumonia num antro de humidade e frio.Caíra da cama e tivera que se sentar, encostado a uma parede para tentar resistir.
- Não há nada…nem ninguém.A minha hora chegou!
A esperança não acaba logo e por segundos ele recordou os seus breves bons momentos. Quando os pais ainda eram vivos, quando saía com uma colega do trabalho e no ar havia uma promessa de namoro, quando partia para um passeio em liberdade , se sentava a ler um livro no parque no final de um dia de Verão quente e suave.Teve saudades intensas.
Mas agora não.Com um grande manto diáfono e negro, uma cabeça armada de cornos , a fada negra, estonteante e terrível subia invisível e lentamente a escada do prédio, atravessava a porta fechada do apartamento, percorria o longo corredor silencioso e entrava no quarto deparando-se com ele, um homem doente, encolhido, frágil e aterrorizado.
Sorriu com aquela grande boca de baton vermelho vivo, dentes brancos perfeitos e sem falar estendeu-lhe a sua garra.
Ele estrebuchou, sorriu, as lágrimas assomaram-lhe escaldantes e deslizaram-lhe pelo rosto, tentou encher o peito de ar e murmurou num relance:
- Mas eu quase que não vivi…
A Morte poisou nele como uma garça.Rápida, violenta e certeira.
Passaram-se dias, uma semana inteira.Só depois, a irmã estranhou ele não atender o telefone.Os vizinhos acorreram.Esperaram por ela,deram-lhe o braço, ampararam a jovem mulher chorosa, impecavelmente trajada de negro,de luvas e chapéu e uma mala de pele, crispada contra o peito que vinha reconhecer o corpo.
Na rua, o vento soprava prometendo em breve o esquecimento.