O SALVADOR

Era tarde de domingo. A avenida estava vazia. Ao volante do automóvel, ele esperava pacientemente o sinal abrir. Vidros fechados, som ambiente. Distraído, balançava a cabeça no ritmo da música, tentando imaginar onde encontraria uma loja de conveniência aberta, para comprar fraldas. De repente, algo que só esperamos que aconteça com os outros. A porta do veículo foi aberta bruscamente e o homem viu reluzir em seu rosto o cano de um revólver:

- Perdeu, perdeu! Desce do carro, playboy! - Disse o jovem, agitado.

Atônito, ele ainda levou alguns segundos para entender o que estava acontecendo.

- Calma, calma… - gaguejou, o homem.

A outra porta se abriu. Instantaneamente outro rapaz, também armado e igualmente descontrolado, gritou:

- Depressa, mané! Sai! Sai!

Desesperado, o homem projetou o corpo para fora do carro, sendo impulsionado por um violento empurrão, que o arremessou com força, contra o chão. O ladrão que estava do lado de fora o encarou e apontou a arma para sua cabeça.

- Pelo amor de Deus, não faça isso! - Implorou o homem. - Tenho família pra criar. - Argumentou.

Não havia a quem pedir ajuda. E se houvesse, quem se arriscaria a desafiar o bandido armado, aparentemente com coragem e sem nada a perder?

- O rapaz sorriu friamente e começou os disparos. Na cabeça, tórax, barriga… Enquanto não descarregou a arma totalmente, não parou de atirar. O parceiro gritava impacientemente, repetidas vezes:

- Bora! Bora!

O atirador então, entrou no veículo, fechou a porta fortemente, acelerou e sumiu no horizonte, deixando o corpo da vítima estendido no chão da avenida.

E ali, permaneceu. Imóvel. Como é de se esperar de um corpo sem vida. Minutos depois, um primeiro movimento. Minúsculo. Nos dedos das mãos. Logo em seguida, foi a vez de um braço, o outro... Um remexido com as pernas. Finalmente, som. Um gemido. Outro. Mais movimento. Começou a levantar-se. Foi arrastando o corpo e gemendo até a calçada. Logo, sentou-se. Gemia, mas não sentia dor. Não sabia se estava morto ou vivo. Aos poucos, a visão turva foi ficando limpa. O pensamento também. Se deu conta do que havia acontecido. Levou as mãos à cabeça. Apalpou-a. Olhou em seguida. Não havia sangue. Levantou-se. Olhou para o tórax. A camisa estava repleta de furos, mas nada de sangue também. Enfiou o dedo em um dos furos. Sentiu o frio de uma peça de metal. Levou outro dedo e arrancou um projétil amassado. Tirou a camisa. Havia vários assim. Passou a mão e todos caíram instantaneamente. Não tinha ferimentos. Olhou para o local do ocorrido e não havia marcas de sangue. Era um milagre. Estava vivo. Vivo e incólume.

Ainda sem rumo pôs-se a andar avenida afora, sem saber para onde ir, o que fazer. Parou inúmeras vezes e olhou para os furos dos projéteis da arma em sua roupa. Procurava uma explicação plausível. Levou a mão ao bolso da calça. Retirou o celular. Estava estilhaçado por um tiro. Apalpou os bolsos de trás. Viu que não teve tempo de pegar sua carteira antes de sair do carro. Continuou caminhando. Encontrou um orelhão. Ligou para a polícia. Em seguida, ligou para casa e disse à esposa que iria se atrasar. Um imprevisto acontecera. Não quis assustá-la, então, foi vago nas explicações.

Cerca de meia hora depois, uma viatura chegou. Foram até o local exato do roubo. Fizeram perguntas. Olharam incrédulos para aquele homem cheio de furos nas roupas, sem um arranhão sequer. Disseram que a arma devia estar completamente descalibrada, que ele teve sorte. Muita sorte. Preencheram o Boletim de Ocorrência e o levaram de volta para casa, prometendo investigar e tentar recuperar o automóvel.

Em casa, a esposa quase teve um colapso. Chorou, xingou, começou uma novena para agradecer a Deus. Disse que nem ele, nem ela sairiam nunca mais de casa. Chorou um pouco mais. Abraçou-o e beijou-o feliz por nada ter acontecido. Semelhante, foi a reação de sua mãe, sogra e familiares próximos.

Passado o susto era preciso continuar a viver. Uns dias de “molho” em casa pelo susto e tudo recomeçou. A polícia não conseguiu recuperar o carro. Ele então acionou o seguro, pois precisava de um veículo para trabalhar. E voltou à pacata vidinha de sempre. Com algumas diferenças que eram percebidas a cada dia.

Era um sedentário clássico. Trabalhava horas e horas sentado diante de um computador. Seu lazer era um vídeo-game, ou assistia filmes em sua enorme TV turbinada com um incrível reprodutor multimídia de última geração. Sua alimentação não era das melhores e seu único exercício físico, era levantar da poltrona massageadora para pegar o controle remoto. Em seus quarenta e poucos anos já havia adquirido o famoso cinturão de gordura, comumente chamado de “barriguinha de chopp”. No entanto, seus últimos exames, realizados por causa do atentado, indicaram uma saúde perfeita. Contrários a todos os anteriores que exigiam dietas e tratamentos pontuais. Vinha emagrecendo naturalmente também. Poucas semanas após o ocorrido, suas roupas já estavam grandes demais para seu novo corpo ‘fitness’. Sentia-se mais bem disposto também. Seus reflexos melhoraram e às vezes, assustava-se com a própria força, que vinha aumentando dia a dia.

Certo dia, seguindo os caminhos que a vida leva, viu-se parado ao mesmo cruzamento daquele dia fatídico. Com a única diferença de ser dia de semana e a avenida estar cheia de veículos e transeuntes nas calçadas. Sentiu-se apreensivo. Tinha a sensação ruim de que algo estava para acontecer. Bobagem, pensou. Era normal sentir-se assim depois de tudo que vivera. Mas, às vezes, um raio cai, sim, duas vezes em um mesmo lugar.

Atento em sua posição de motorista, viu quando um sujeito saiu da calçada, correndo em direção ao primeiro carro da parada do semáforo. Tinha uma arma na mão. Apontou-a para a cabeça do motorista que foi pego de surpresa, assim como havia acontecido com ele. Absurdamente. À luz do dia. Desta vez, diante de dezenas, talvez centenas de testemunhas. Haveria mais um latrocínio. E desta vez, o motorista poderia não ter a mesma sorte que ele tivera.

Em um ato de coragem, até então, por ele desconhecida, saiu do carro e correu em direção ao assaltante, aos gritos:

- Ei! Larga essa arma! Não vai matar essa pessoa! – Bradou!

O assaltante foi surpreendido pela situação e virou-se em direção ao homem, para ver quem era o louco que desafiava sua ação. Apontou a arma e olhou-o com expressão de curiosidade. Parecia familiar, embora não o tivesse reconhecido pela aparência, agora, bem distinta.

- Não vai roubar esse carro! Não vai matar esse homem! – Continuou o herói de ocasião.

Apreensivo, porém, sem hesitar, o bandido manteve a mira e descarregou a arma, efetuando inúmeros disparos certeiros em direção ao desafiante.

Antes, porém, do primeiro disparo, o homem fechou os olhos e levou um braço à frente do rosto, num movimento típico de quem quer defender-se de alguma coisa. E assim permaneceu. Ouviu os disparos. A gritaria. Pessoas nas ruas correndo. Outras se abaixando aos pisos de seus veículos. Desespero generalizado. Após o último disparo, o homem permanecia de pé. Abriu os olhos. Alguns furos pela roupa. Nada de sangue. Nada de dor. O bandido olhava assombrado. O homem então, projetou-se para cima dele de forma agilíssima, tomando-lhe a arma e arremessando-o posteriormente contra o chão. Desacordado, ali permaneceu.

Porém, na adrenalina de conter o assaltante, o homem esqueceu-se que aquela ação era geralmente em dupla. E enquanto detia o primeiro assaltante, o outro havia ficado à espreita para agir. Então, ouviu uma voz, já conhecida, gritar:

- Ei, mané! Segura essa! – Disse o segundo bandido.

Virou-se instantaneamente, porém foi alvejado violentamente, por uma arma de calibre maior que a primeira. Desequilibrou-se. Tentou firmar-se se apoiando na lataria de um carro enquanto os disparos seguiam em sua direção. Ergueu o corpo. Não havia sofrido ferimentos. Encarou o segundo ladrão, irritado. Fez um único gesto com uma das mãos e, sem encostar no meliante, este fora arremessado fortemente contra uma parede de um comércio à margem da avenida, caindo inconsciente ao chão.

Recolheu as armas. Empilhou os dois assaltantes. Pediu em voz alta que alguém chamasse a polícia. Estava acabado. As pessoas foram se aproximando admiradas. Era incrível o que acabavam de presenciar. Palmas. Gritos. Assobios. Um herói havia surgido. Todos estavam impressionados. Inclusive, ou principalmente ele mesmo.

De onde surgiu tal poder? Seriam os poli-vitamínicos que vinha tomando? Ou o detestável espinafre da salada que sua esposa o obrigava a comer? Teria vindo de Kripton em uma nave espacial e seus pais lhe ocultado essa informação até hoje? Seria a personificação dos X-MEN? O fato é que a partir daquele momento, independentemente da origem de seu poder, ele nunca mais seria o mesmo. O mundo nunca mais seria o mesmo.

Para ele, uma coisa era certa: era especial. Descobriu posteriormente ao evento na avenida, que além de invulnerabilidade, força sobre-humana e telecinésia, fora agraciado com super-velocidade, emissão de ondas concentradas de calor, visão e audição extraordinárias e, é claro, levitação – podia voar. Era praticamente um Deus em meio aos mortais. Assim, não poderia ficar parado. Ofereceu seus préstimos ao governo. Agir junto com a polícia. Prender bandidos, oferecer segurança à população.

A imprensa fez uma devassa em sua vida. Sua origem, infância, pais, família, profissão. Sua atual condição financeira. Seus sucessos e fracassos até então. E, principalmente, após revelar sua identidade ao mundo, deram-lhe uma alcunha, como é cabível a qualquer herói. Antônio da Silva Salvador, tornou-se então, O Salvador.

O Salvador, agora devidamente uniformizado com um collant camuflado, ilustrado com a insígnia de seu nome bordada no peito, atuou muito tempo sob a tutela do Estado. Participou de operações secretas, prendeu bandidos, desmantelou quadrilhas, diminuiu a criminalidade. No entanto, quanto mais agia de acordo com a lei, percebia sua fragilidade, brechas e incapacidade de deixar o país melhor. Assim, sendo único e poderoso, dado momento, decidiu agir à margem dela.

Transformou-se em um caçador voraz e imprevisível. Não prendia mais bandidos. Matava-os. Invadiu favelas. Exterminou traficantes e comparsas (independentemente da idade). E o mesmo fazia com gangues de rua, ladrões de carro, batedores de carteira, policiais corruptos. Voltou-se aos políticos, criminosos do colarinho branco. Agora era Juiz, Júri e Executor. E quem se opunha a seus métodos, virava pó.

A criminalidade diminuiu vertiginosamente a níveis quase nulos. Embora apreensiva, a população finalmente alcançou a tranquilidade desejada para seguir a vida. E isso lhe trouxe apoio popular. O Salvador então, decidiu candidatar-se à presidência do país. Com a promessa de cuidar dos demais problemas da nação com o mesmo vigor e energia, foi eleito no primeiro turno.

Uma vez no topo, decidiu que seria melhor para todos, permanecer ali para sempre. Fechou o congresso, fez sua própria constituição. Houve tumulto. Agitação. Protestos. Atos de apoio. O caos poderia ter-se instalado, mas aos contrários, ele reagiu exterminando-os. E disse a todos que esse era o primeiro passo para um mundo melhor.

Indestrutível como era, restou a quem queria viver, apoiá-lo, ou fingir apoio. Dez anos depois daquele dia no trânsito, ele já havia dominado todo o continente e persuadido as outras nações a seguir o plano de Nova Ordem Mundial. Foi emblemática a imagem dele erguendo o Presidente dos Estados Unidos pelo colarinho, à porta da Casa Branca.

Dizimou o Estado Islâmico, extinguiu as FARC, o IRA, Hezbollah, Al Qaeda e demais grupos terroristas. Reduziu arsenais bélicos a pó. Consumiu armas de destruição em massa de todo o globo. Destituiu Kim Jong-il, Castro, Maduro, Abdul-Aziz e todos os outros ditadores e intitulou-se Único Líder do Planeta.

Agora vivia em um palácio enorme, muito bem guardado por um arsenal invejável e soldados de alta classe. Segurança não para ele, óbvio. O Salvador era indestrutível. Sim, para o restante das pessoas, planos e pesquisas que eram feitas ali dentro. E sua família. Até que os cientistas descobrissem uma forma de torna-los como ele. Lá também, um grupo de pesquisadores cuidava exclusivamente do monitoramento de sua saúde. A evolução de seus poderes, seu aumento e principalmente, a questão que mais o intrigava: imortalidade. Embora fosse um Deus diante dos humanos comuns, não sabia se viveria para sempre. E esse era seu plano. Assim, autorizou pesquisas nas instalações da Morada do Salvador, que trouxessem resultados satisfatórios.

De seu trono em sua morada, o Salvador acompanhava com seus olhos atentos e sentidos apurados, em uma tela gigante o andamento de tudo no planeta. As notícias eram supervisionadas por sua equipe. Não se divulgava o que não fosse permitido. O Salvador só era citado em feitos e notícias favoráveis. Caso contrário, desde o autor até as instalações do local, deixavam de existir. O Salvador interferia nos esportes, na condução da saúde, economia. Tudo era decido por ele ou autorizado por ele, que alguém o fizesse. Quando era preciso, deixava sua fortaleza e ia pessoalmente resolver algo que lhe desagradasse.

Não havia guerras, assaltos, assassinatos. Raramente ocorria uma briga. Mas também não havia liberdade. O direito à posse, ao livre pensamento e comportamento era algo que ninguém mais tinha. Todos agiam sob a batuta do Salvador. E isso gerava insatisfação. Embora ninguém ousasse dizer. A economia ia mal. Havia escassez e desemprego. Quando notificado, o Salvador obrigava o remanejamento de recursos, que supria em determinado momento um lugar, mas acarretava em um problema maior em outro, posteriormente. Mas era ele o Único Líder. Dele partia a solução. Aos demais cabia acatar e viver.

Vez ou outra ele fazia um pronunciamento ou participava de um evento público. Geralmente de inauguração de estátuas gigantes em sua homenagem. Orgulhava-se do rumo que havia dado ao planeta. “Eu lhes trouxe a paz, Eu trouxe a ordem ao mundo!”, dizia. E sorria satisfeito ao receber os aplausos eufóricos da plateia acuada, mas que fazia cara de felicidade.

Em sua fortaleza era bem servido como grande rei que se tornara. Nos momentos de tédio, abria uma garrafa de vinho de safra especial e apreciava o doce sabor, enquanto brindava a si mesmo, repetindo seu mantra:

- Eu trouxe a paz, Eu trouxe ordem ao mundo! Eu sou o Salvador!

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Duas batidas leves. Uma das portas dos fundos do palácio se abriu. Havia um serviçal aguardando o sinal. Em silêncio, o homem de jaleco o acompanhou por entre cômodos até outra porta no interior do complexo. O serviçal tirou um molho de chaves do bolso, abriu a porta e esperou que o outro homem descesse as escadas. Ficou aguardando.

Lá embaixo, o homem de jaleco procurou cuidadosamente por entre as garrafas da adega o rótulo certo. Seguiu as orientações. Havia várias iguais. Era a marca e safra preferida do Salvador. Escolheu uma, levou à mesa. Tremia. Suava. Retirou do Bolso uma seringa e um tubo de ensaio. Abasteceu a seringa com o líquido transparente, enfiou a agulha na rolha da garrafa e aplicou o líquido em seu interior. Conferiu para ver se havia ficado alguma marca, devolveu a garrafa a seu lugar. Subiu rapidamente as escadas de volta. O serviçal voltou a trancar a porta. E fez o caminho reverso. O homem de jaleco o seguiu. A porta de saída foi aberta novamente. O homem de jaleco saiu apressadamente.

Minutos depois, de volta às instalações do centro de pesquisas do complexo residencial do Salvador, o homem de jaleco caminhou apreensivo até sua sala. Pegou o telefone. Discou um número. Foi atendido imediatamente:

- Conseguiu? – Arguiu a voz do outro lado.

- Está feito. Desta vez, vai funcionar. – Disse o homem.

- Espero que sim. – Replicou a voz.

Colocou o fone de volta ao aparelho. Retirou do bolso a seringa. Descartou-a no coletor de lixo biológico. Do outro bolso retirou o tubo de ensaio. Leu mais uma vez o rótulo antes de destruí-lo. Havia uma expressão manuscrita em caixa alta: JUDAS Nº 8.

W B Guilherme
Enviado por W B Guilherme em 10/06/2019
Código do texto: T6669358
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