SILVIA ALUMÍNIO

Ela caminhou apressada até a padaria. Era absurdo, era impossível. Mas, era real. Ali.

As pessoas não tinham mais cabeças. As pessoas não tinham cabeças, nem braços. No lugar, haviam, aleatoriamente, objetos diversos. Esbarrou, no passo apressado em alguém com uma colher gigante no lugar da cabeça. Ela olhou para trás e observou a figura de cabeça de colher e batedores de bolo no lugar dos braços. Ela continuou caminhando. Apressada, com testa suada e as mãos fechadas, quase espremendo a si própria.

- Vai dar tempo, vai dar tempo – Ela sussurrava para si.

Fazia frio, talvez o dia mais frio do século, mas era só um frio, sem neve. A neve fora proibida.

- Bom dia, Silvia, bonitos sapatos - Disse um homem com cabeça de cômoda, onde a gaveta abrindo e fechando lhe serviam de boca. Mas sem olhos. Não, peraí. Talvez houvesse olho ali em algum lugar. Ela deu meia volta e enquanto ele ainda caminhava sem diminuir os passos, ela o rodeava acompanhando cada batida de botas. As botas! Teriam elas olhos?

SIM! De cabeça rente ao chão ainda caminhando ao lado do Cômoda, que pareceu não se importar, ela viu que na sola de cada uma das botas daquela figura, haviam um olho em cada.

- Eu sei, eu sei. Vai perguntar os motivos, não é, Silvia?

- Mas... Mas, Como?

- Aqui em Pandora, pequena, Silvia, tudo é distorcido, nada parece ter uma motivação de existir, apenas, existem como num sonho. Os meus olhos hoje são nas solas unicamente por minha mania de imaginar o futuro, tentar enxergar muito á frente e ao mesmo tempo não conseguir tirar o passado da minha cômoda... Digo cabeça. Então, neste lugar eu sou forçado a olhar para frente num passo ao mesmo tempo em que o outro insiste em me mostrar o que já passou, ou seja, de nada mais importa. Assim como você, Silvia. Deveria ter ficado no passado alguns passos ali atrás, não devia ter me seguido até aqui. Você parecia apressada, não está atrasada para algo?

- Oh meu Deus! – Ela correu entre os carros feitos de caixas de fósforos e algodão enquanto choviam fotos 3x4 de garfos, pantufas, rosquinhas e brigadeiros no lugar da cabeça.

Ela já estava sentada no criado mudo há alguns minutos quando resolveu finalmente ligar.

Discou o telefone que estava em seu colo.

- Se me permite Madame Silvia, eu cozinhei essas flores para a senhorita hoje – Disse o criado mudo. Jeferson, um homem de um metro e oitenta e nove de altura e criado de Silvia, servia de repouso á ela. Ele não era mudo de verdade.

Enquanto ouvia o telefone tocar, Silvia cantarolou Ritchie e jogou as flores pela janela.

- Alô?

- Oi, Silvia. Fala.

- Eu... Só queria saber como você está

-Na UTI, lembra?

- E como é aí?

- Tem cheiro de removedor de esmalte.

Jeferson, o Criado Mudo, começou a lacrimejar e o seu rosto se dissolveu como uma lesma no sal.

- E o Jeferson, como está?

Silvia olhou para o resto do Criado Mudo e só sobraram as pernas sobre as quais ela continuava sentada.

- Jeferson está ótimo, melhor do que nunca. Está feliz e realizado. Eu nunca o vi tão... Aberto assim a novas pessoas.

Na rua, um garoto que tinha garfo e faca no lugar das mãos fazia um número de Jazz, tilintando aço contra aço.

E havia música de novo e havia paz.

Entrecidades Kintsugi
Enviado por Entrecidades Kintsugi em 17/04/2019
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