Tri-hexafobia

Os moradores da cidade a conheciam como a filha da "Maria Arrepiada". O nome pouco importava a qualquer um. A menina era inconveniente e "espelotiada", no linguajar local. Tinha seus 13 ou 14 anos. Mal aproximava das pessoas, quem quer que fosse, e já lhe metia um belisco dolorido pelos seus dedinhos com unhas salientes. Era uma garota abusada. Todos a viam como uma adolescente, retardada mentalmente, agressiva e louca. A mãe nunca fez algo de útil. Nunca impediu, não alertava o desavisado, nem mesmo amarrava as mãos da menina, quando no espaço público. Acreditava e dizia , que ela era endemoniada. Não permitiu que a tratassem do mal. No fundo, maternalmente, orgulhava-se disso aquela mãe. Ter uma filha que nada lhe destacasse, não a ajudava a viver. Com esta que tinha, recebia doações e apoio do serviço social da cidade. A pastoral mandava mantimentos todo mês. Só tinha que, vez por outra, sair às ruas com a garota, em toda sua esperteza presente nas mãos agressivas ou nos gritos de raiva quando, mais ligeiros, os meninos se desviavam de suas unhadas e beliscões.

- Olha a filha da "Maria Arrepiada", alertavam os garotos entre si quando era para correr em fuga.

Certa ocasião numa festa paroquial, apareceu a espevitada filha da "Maria Arrepiada" logo atrás do padre, sem a mãe por perto e , inexplicavelmente, quieta e controlada. O pároco desfilou por todo lado com a menina apática, sem sua agressividade peculiar. Mesmo com a garotada achincalhando-a, apesar de todo o barulho e do padre que não dava a mínima atenção para ela, a filha da "Maria Arrepiada" permanecia imperturbavelmente comportada. Estava agora uma figura de linda menina e até sorria. Não estava dopada, nem foram ministrados tranquilizantes que tomava apenas ao dormir. O único detalhe era a ausência completa da mãe ao seu redor.

Desse dia em diante, a "Maria Arrepiada" foi tida como a razão da filha ser endiabrada daquele jeito. A mãe viu sua estabilidade social desabar sem dó, e quando as doações minguaram, entrou em pânico. Nem a Pastoral dava mais nada, agora que a filha saia às ruas sozinha. Para ela, o padre era o culpado, quando endireitou a filha, num momento seu de descuido. A menina era boa, simpática e bonita, mas a mãe a fazia ser o monstro que era, dizia o Padre. Assim ficou de vez, assim foi assimilado na cidade por todos.

Foi então no dia em que a filha começou a frequentar a igreja, que a "Maria Arrepiada" nem pestanejou quando gravou os números na testa da menina, como se fosse uma vaca a ser marcada com ferro em brasa. Botou logo "666" com a filha dopada, na base de estilete, caneta de flip-chart e muito sangue. Na primeira chance foi presa pelo Delegado e logo perdeu a guarda da filha por ordem do Juiz. Só que o mal já estava feito, agora que a garota ficou com a tatuagem definitiva da besta na testa. Dizem que ela cresceu mais um pouco, embonecou, foi logo adotada por uma família rica e virou uma cobiçada rapariga crente, cabelos longos até a cintura, em vestido "jeans" abaixo dos joelhos e sem a falta de dinheiro. Agora é youtuber em vídeos evangélicos, nos quais chama de satânicas pela internet, as religiões espiritualistas de origem africana ou espíritas. Há quem diga que tenha algo mais que aquela infeliz tatuagem na sua testa. Disso eu mesmo bem sei: não é "tri-hexafóbia", nós é quem somos, pois suas coincidências botam medo em todo mundo na cidade. Mora sozinha na rua Seis, na casa de número 66, junto com seus seis gatos, seis cachorros e seis tartarugas. Tem seiscentos e sessenta e seis vídeos postados e está com seiscentos e sessenta e seis mil visualizações no YOUTUBE.