Dia de Coleta
No fim do expediente, enquanto arrumava a mesa, o chefe o encarou por cima dos óculos.
- Você vai lá amanhã?
- Tenho que cumprir meu dever cívico, não é? - Redarguiu erguendo-se, casaco dobrado no braço.
- Seis meses... o tempo voa. Eu fui dispensado, como sabe - declarou, brincando com uma caneta entre os dedos.
- É a idade - retrucou, com um sorriso que esperava ser de simpatia.
- Um dia, todos seremos dispensados - assentiu o chefe.
- Um dia, todos estaremos mortos - foi a resposta seca.
Saiu.
* * *
A enfermeira chamou o seu nome. Pediu que se sentasse na cadeira acolchoada, e estendesse o braço...
- Direito ou esquerdo?
- Direito. A veia pega melhor - sugeriu.
A enfermeira pegou uma bolsa plástica de 250 ml e começou a preparar o procedimento. Ele já estava habituado com a rotina, e manteve um ar indiferente, mesmo quando a agulha perfurou seu braço e o sangue começou a correr para a bolsa. A enfermeira consultou o relógio de pulso.
- Muitas ausências hoje? - Indagou ele, para quebrar o silêncio.
- Não, dentro da média - redarguiu ela. - As pessoas sabem que podem enfrentar consequências legais se não vierem doar.
- Ouvi dizer que esse tipo de doação já foi voluntário... - comentou.
- Isso faz muito tempo - confirmou ela. - Foi antes de eu me formar, e entrar para o Corpo de Coleta.
- O que aconteceria se as pessoas se recusassem a doar? - Insistiu ele.
A enfermeira lançou-lhe um olhar tenso.
- Creio que você não gostaria de experimentar o resultado. Nossos mestres têm muita sede... somente a doação voluntária pode impedir que se lancem sobre nós como gado a ser abatido.
Ele sabia disso, mas ainda assim, ponderou:
- Devíamos fazer algo contra isso... eu acho.
- Melhor você calar a boca - sugeriu a enfermeira. - A polícia e os militares estão sob o controle deles, e a pena de execução pelos sugadores de sangue já foi descrita como bastante dolorosa.
Ele calou-se. O procedimento terminou, e teve o dorso da mão direita carimbada com tinta ultravioleta, assegurando que cumprira a sua parte para manter as coisas como estavam. Na parede, um cartaz branco com letras vermelhas, advertia: "O SEU SANGUE MANTÉM A SOCIEDADE FUNCIONANDO".
Deveras.
- [21-03-2019]