DISCURSO DE ANIVERSÁRIO

Eu nasci em abril de 1877. Isto não está nos registros porque não me conhecem. Se a vida é longa? Entre as minhas teorias sobre a vida, posso dizer que tenho uma longa carreira nesse show porque sempre me reinventei. Cada um se reinventa do seu jeito, por isso nem seria preciso falar muito sobre mim, apesar de continuar vivo já em um terceiro século.

Da minha infância lembro muito pouco. Minha mãe vestia preto e gerou dez filhos. O meu pai andava na frente e não falava comigo. Nós tivemos duas criadas naquele tempo. Uma delas tinha a fama de lançar macumbas contra crianças. Eu e os meus irmãos tínhamos medo da tal mulher. E como tudo era terrível, achei que devia responder àquelas ameaças de alguma forma. Um dia descobri que meu pai escondia um revólver de percussão Colt 1851. A criada macumbeira sabia deste Colt e qual era o seu uso. Procurei a arma entre os pertences do meu pai e apontei a máquina para o nariz da criada quando ela entrava em casa. A mulher ficou apavorada, senti-me vingado e ali acabaram as macumbas contra crianças; ou não acabaram, porque estou por aqui até hoje. Talvez a grande macumba da criada tenha sido me deixar vivo.

Da minha fase adulta posso dizer que fui casado. Minha primeira mulher teve oito filhos. Todos eles já morreram. Do rosto de minha esposa, lembro da nossa primeira noite de amor. Ela arregalou os olhos para morrer vinte e cinco anos depois, vítima de tuberculose. Ela me chamava de “meu bem” e era uma boa alma. Não tinha inveja de ninguém: nem das irmãs, primas, amigas... Tinha a benevolência de uma heroína romântica. Hoje sei bem... ela era uma heroína romântica.

Eu me casei pela segunda vez aos cinquenta anos e isto equivale a dizer hoje em dia, que um homem de oitenta anos está casando. Estávamos em 1927. Faz tanto tempo e tenho a impressão de que sempre fui velho, embora isto não faça muita diferença.

Tive um único filho com a nova mulher. Este filho morreu há dez anos e, no momento do seu óbito, por causa da esclerose múltipla, ele não sabia se eu era o seu pai ou um dos seus filhos.

Meu último filho gostava de Frank Sinatra e ficava tranquilo quando eu cantava “My Way” à capela.Na hora da sua morte eu segurei a sua mão e quis cantar “Only the lonely” também de Sinatra.

O que posso dizer mais sobre este segundo casamento: durante aquele tempo o Rio de Janeiro queria ser colorido. Ainda era uma cidade preta e branca, apesar das fotografias do alumínio brilhante que revestia os aviões Douglas DC-3 da Varig.

Estou em 1950, estou em 2017. Estou agora em qualquer lugar.

DO LIVRO:"ÓBITOS EM COPACABANA"

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 05/02/2017
Reeditado em 27/06/2022
Código do texto: T5903039
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