FALAR DE JOYCE DEIXA AS PESSOAS ULISSES

De que maneira somos dominados pela tirania dos meios de comunicação? Qual é o contraponto existente entre a vida cotidiana e o brilho sedutor da nossa modernidade?

Em “Experiência e pobreza” (1933), o pensador alemão Walter Benjamin reflete sobre a impossibilidade da experiência comunicável no mundo contemporâneo, mediante o monstruoso desenvolvimento da técnica. Segundo Benjamin, os fatos perderam qualquer significado ‘a priori’. Desse modo, o homem deve enfrentar o mundo a cada instante como se fosse o primeiro. Não há nenhuma ordem prévia que estruture o real, nem a possibilidade de sedimentação das experiências vividas. Não há mais a possibilidade de transmissão da experiência, já que não é mais possível a constituição de uma tradição. A miséria do homem contemporâneo é a sua impossibilidade de adquirir, sedimentar e transmitir qualquer experiência. Neste texto, como em “O Narrador” (1936), Benjamin relaciona essa nova condição da experiência do real com a experiência estética da arte de narrar:

“(...) o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se ‘dar conselhos’ parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada (...) O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria - o lado épico da verdade - está em extinção.”

De outra parte, o romance “Ulisses”, de James Joyce, considerado por muitos como o mais audacioso projeto de ficção contemporânea, parece querer encerrar todas as narrativas em um só livro, visto que busca representar o todo de uma cultura, na sua diversidade de histórias e de línguas, em uma única narrativa.

Dessa forma, segundo Benjamin, seria correto afirmar que a narrativa joyceana dá por encerrado o ciclo da originalidade antes concedida à experiência humana? Não há nada de “novo” para ser contado em nossos dias? Será James Joyce o “grande narrador” que comunica a sua própria desorientação, na qual a tradição não está ausente, mas agonizante? Aliás, quando nos defrontamos com o “Ulisses” joyceano, não residiria neste gesto um esforço no sentido de entendermos a desorientação e a cegueira do nosso próprio tempo, mergulhado na orgia do cotidiano?

Segundo tantos, dentre eles Jorge Wanderley:

“Falar de Ulisses deixa as pessoas cegas.

Joyce, pelo menos, a gente vê

num restaurante austríaco, almoçando

com a família entre valsas e dramas,

e tal.

Mas Homero, esse a gente não sabe se

ele era a versão de Borges

ou aquele busto que poderia ser de Sócrates.

O grego, portanto, leva a uma cegueira maior

que a da estátua, olho opaco fechado no aberto.

Falar de Joyce deixa as pessoas Ulisses

e os cegos pelo menos têm um olho

polifêmico e vulnerável

que nos mira antes de almoçarmos

para então chorar os nossos mortos,

Borges também deixa todo mundo

cego e grego:

o Imortal e seu cão Argos e tudo. São

protonautas do táctil, do auditivo,

do sensitivo mar no olhar enxuto?

Falar de Homero deixa as pessoas

Joyces e Borges

deitadas no mesmo verde do cego.

Há aquilo que vêem para dentro, é certo,

assim:

o olho opaco fechado no aberto

chora seus mortos com Argos e tudo

e o sensitivo mar

do olhar enxuto

assim se encerra assim.”

(Jorge Wanderley .“Que coisa tão literária”. Folha de S.Paulo. S.Paulo. 11 março 1984. Folhetim, p.12)

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

verão de 2006