Água
Primeira série, chegara a hora crucial em que devíamos demonstrar quanto sabíamos da escrita. A professora, senhorita Josefina, assim chamávamos às professoras, (minha homenagem a ela), disse a palavra e encarou a classe como num desafio: Quem sabe escrever Água? Esperei ansioso por alguns segundos (me arrepio ao lembrar aquele instante fundador de há meio século!). Vendo que todos os colegas estavam tão encolhidos quanto eu, ousadamente levantei a mão. A aquiescência da professora determinou o momento inaugural. Dirigi-me trêmulo à lousa. Sentia os olhares dos outros alunos nas minhas costas como mãos que me empurrassem ou tentassem me deter. Empunhei o bastão de giz, que até aquele dia nenhum dos alunos havia tocado, e comecei a desenhar as letras vencendo a resistência do cotovelo que depois ficou doendo. Lembro que no "g" hesitei, como se desenhava? Em quê se diferenciava do "q"? Superando a dúvida, desci o punho para traçar a ogiva e a mão subiu novamente, mais segura e pesada (era a primeira vez que escrevia numa superfície vertical). O "u" era uma conseqüência daquele movimento ascendente, algo como um divertimento dos músculos do antebraço relaxados na descida e tensos na ascensão que repetia a linha breve, que com um ponto seria um "i". O "a" era antiga conhecida, estava no início da palavra e também fora a primeira letra que aprendemos a desenhar. Era o prefixo e a coda da palavra, seu reflexo, que a arredondava como para significar uma gota. Foi longo o percurso!
Olhei a professora, incerto ainda do sucesso. O sorriso dela, sorriso que até agora vejo, era emocionado, satisfeito do dever cumprido. Creio que a satisfação não provinha apenas do fato que um aluno tivesse conseguido escrever sua primeira palavra. Havia algo mais. Algo que tinha a ver com a minha origem social, à beira da miséria, e também com a sua própria. Ela tinha pele escura, negra, para os padrões da cidade de população de ascendência européia. E eu, um negrinho também, havia sido o primeiro a demonstrar a capacidade de aprendizagem dessa turma. Recebi o sorriso com a garganta apertada. Foi angústia primeiro e alegria depois: eu sabia escrever!
"Água", a primeira palavra que escrevi publicamente. Talvez tenha sido a primeira de todas as palavras com as quais depois preenchi resmas de papel. Nunca pensei que ela poderia se tornar uma espécie de apelo para a salvação do planeta. "Água", dádiva da natureza! Por sua fluidez nos parecia inesgotável, infinita. Ela sugeriu a poetas e filósofos metáforas para a vida e a morte. Para mim foi o primeiro desafio ao intelecto e o descobrimento de um mundo novo, mais rico que aquele onde vivera até então. A escrita, vertente generosa, prometia-me participar ativamente do mundo das idéias.