Nadeando IV

... Como o que fecha os olhos, e procura no mais fundo um derradeiro alento ainda, e canta quebrando-lhe a voz, partindo a alma.

Como o que esculpe sombras, figuras como suspiros, no seu obradoiro em desordem, no meio de uma floresta de pó, afastado de tudo até mesmo depois da fama, minuciosamente dedicado a talhar as pontes rotas entre as coisas, as feridas secretas de todo ser.

Como quem, por um instante inconsolável, olhou para os seus conterrâneos com a fraternidade de um condenado a morte a outro, como um homem separado que, arremessando todos os venenos, foi por escuros caminhos a nenhures, com toda a sua nobreza, querido, admirado, e vai morrer a um asilo.

Como o que acredita que ainda é possível dizer não.

Como o que, pintando freneticamente, sem vender um quadro, vê no seu próprio rosto auto-retratado a loucura, e tem de matar-se.

Como um apátrida exilado, que toda a sua longa vida pensou em suicidar-se como alívio contra o mal de viver, e afinal dá-se conta de que foi a ideia do suicídio, só ela, o único que o acompanhou.

Como quem lhe retorceu o pescoço a todas as ideias, nas quais se abrigavam resguardando-se da vida, contracorrente, e essas mesmas convertidas em instituições monolíticas, caem implacáveis sobre ele esmagando a sua lucidez, para finalmente ser convertido em ideal pelos que haviam de vir.

Como quem foi um ser anódino, jamais visto, e quando morre descobre-se no seu triste quarto uma arca com tanta gente dentro que não se pode imaginar, porque era um e ademais era muitos e amava as paisagens que não existiam, habitando mais lugares que qualquer.

Como um ladrão, um invertido, anteriormente preso, sem casa nem família, que renega da sua pátria, vivendo sempre nas margens entre perseguidos, entre traidores, desertores, e um bom dia, sem procurá-lo, chega-lhe o êxito, sendo reclamado para dar um discurso edificante aos moços de um reformatório de portas abertas, e quando lhe dão a palavra, espeta-lhes:

Se este parvo vos deixa aberta a prisão, que esperais, ide embora já, sem olhardes para trás.

Como aquele que era o mais grande leitor, que de repente ficou cego, e viu então como nunca, convertendo-se no mais grande leitor mais lido, porque era já outro ainda que o de sempre: quem escreve devorado pelos tigres da pena, os que não estão no verso, mas ele é um de esses tigres.

Como todas estas ilhas, unidas por aquilo que as separa.

Como ninguém.