Nadeando III

... Meu segredo, o que não sou. O que não tenho, meu centro.

Os objectos que nunca me presentearam, enfeitam-me. Não posso deixar de sentir que decifro o enigma das almas no caleidoscópio de prata que não possuo, e que jamais mirei. Não posso deixar de pensar que ausculto o coração do tempo na minha inconcebível clepsidra nunca minha. Não consigo esquecer a imagem dos meus dedos enluvados de coiro amarelo pálido acarinhando a nuca de uma amiga (minhas impossíveis luvas não encontradas!). Não consigo deixar de recender o remoto, e ainda desconhecido, perfume de certas rosas de areia do deserto em alguma improvável primavera.

Assim, adornado pelo que me falta, invento-me um vazio, que absorvendo o que me rodeia, precipita-o para mim: é a sedução, que me seduz.

No labirinto da minha biblioteca não se pode achar o livro que decifre a trama da minha vida. Não se podem verificar no seu centro profundo os vestígios, os traços que desvelem o enigma que me desfaz: a Anatomia da Melancolia que me escoa e me persegue, não poderei reler.

O que não posso, a minha força. O que não quero, o meu tesouro. De outros tempos, os meus gostos delatam-me: ter fraqueza pela vadiagem silenciosa, por esse solitário fazer ruas inomináveis do passeante bem perdido, lentamente; e só haver ruído que escutar, e ruas de asfalto planificadas demais por onde não poder perder-se, apressadamente. Gostar do cinema, desse impensável equilíbrio de estar só mais acompanhado, último lugar onde as sombras não pesam, desaparecido; e ver como os outros não o deixam a um estar sem um, como nada brilha já, e no lugar de um sonhador um insone aparece. Escreverei então cartas que nunca hei-de enviar, para receber depois envelopes que não poderei abrir.

O que não saberei, o que me faltará, o que não serei, serei...