Nadeando

... Chamo-me Ninguém e sou de Nenhures. Não venho de nenhum sítio, nem para mim há lugar algum aonde ir. O meu, se algo meu puder haver, não seria certamente a acção, senão a paixão. Eu quiser ir mais devagarinho ainda: andar mais lentamente, falar mesmo com voz mais baixa, sussurrando apenas, até conseguir calar de uma vez.

Eu, a verdade (assusta-me a palavra), não sei quem sou, nem no caso de ser algo quero sabê-lo; talvez seja o que não seja, e nem sequer isso me é dado conhecer. Acaso o meu não saber seja quem me mova um pouco entretanto. Não sei.

Descreio do ser, pois o vazio pressinto. Nada pode sustentar-me: quando vá pisar o chão em que me assente, haver-se-á de mover e não poderei fazer pé. Tudo se vai, e tudo volta, mas nada se vai, e nada volta; e quem diz eu deveria avermelhar de vergonha, ou pronunciar-se entre bocejos.

Igual a todos, por isso me atrai o matiz, o detalhe, a inutilidade. Todos iguais, pelo que sempre adorarei o subtil. Deseduco-me e desaprendo, e me indefino e simplifico: solto o lastro ao que me condenaram, e assim, sem ir, vou indo.

Do que gosto é de perder o tempo, mas se isto parecesse de pouco peso, de outro modo o diria: perder-me do tempo é o que me fascina. A indolência possui-me, como o desdém deste mundo: saem-me como as unhas (não é questão de ideias, essas as vou matando), tão-só de vez em quando as posso cortar.

No pior, é certo que não sou deste mundo, e no melhor nem quase do postremo. Já ninguém guarda o silêncio, mas ele era quem num princípio estava, e o que depois desta linguarice sem fim haverá de voltar. Não esqueço, porém, que quando este que aí acima paroleia -que nem sei quem é-, vai baixando a voz, o silêncio começa a falar, deixando por um instante ser, ainda que no esquecimento; desprende-me de mim, ou do que acho que, ainda não indo, vai comigo; desapega-me dele, e entrega-me a todas as coisas porque a nenhuma; torna-me plural, caleidoscópico, pura possibilidade, nada:

E assim é que me chamam Ninguém, Dom Ninguém, ou Qualquer, Um Qualquer. E não vou a lugar nenhum. E ninguém -nem eu- vem comigo...