Selene e Chuva
SELENE
Navegamos o dia todo. No crepúsculo fomos sobressaltados por vozes que pareciam surgir do fundo do rio. Luzes ao longe: festa em algum clube à beira do Tigre. Nosso destino era outro.
Juanito, meu guia, cansado de remar, dormia na barraca no limite da floresta. Ele confiava em mim, que optara por fazer a primeira guarda, eu confiava na minha arma.
Noite clara; céu liso; estrelas nítidas, distantes.
A água batia na costa embalando o bote. Para um peixe pequeno, a ribanceira seria uma falésia. Meus olhos acompanharam (por quanto tempo?) o vai e vêm do rio. Compreendi que fogo e água são duas faces do mesmo sentimento de nossa espécie.
O vazio.
Esfericidade do planeta na cavidade do espaço. Cada coisa existe isolada sem ofuscar o conjunto. Ausência do tempo: vida em sua essência. Mesmo o balanço das ondas era (foi) algo estático: moto perpétuo. Sensação brevíssima. Senti o universo sem desviar os olhos da água aos meus pés. Não foi a enumeração sucessiva do inventário, mas o viver a quantidade e a qualidade do todo sem antes nem depois. Apesar dos meus vinte anos, poderia ter morrido naquele instante de plenitude. Senti o peso e o volume do revólver na cintura; soube que seria fácil apontá-lo ao coração, soube também que agora (então) teria sido inútil: o tempo havia retornado.
Monotpnia das ondas, silêncio da noite.
Solitário nesta ilha ignorada pelos mapas, contemplo teu corpo branco no escuro lençol d'água.
CHUVA
Pela janela da biblioteca observo a mudança do tempo. O jardineiro do colégio manipula mudas de plantas que irão texturizar a monotonia da parede de concreto que isola o prédio do rumor da cidade. Com a ligeireza de um prestidigitador rasga o plástico que envolve a raíz. Usa uma pequena ferramenta cortante, imagino um canivete.
No fim de tarde, nesta época do ano, é comum que as nuvens fechem o céu; nuvens pesadas, de cinza escuro, premonotórias de tempestade. O jardineiro olha o céu encoberto e seus movimentos se tornam mais rápidos. Deve ganhar tempo ao tempo. As mudas estão dentro de um caixote de onde ele as retira com celeridade crescente. Nas mãos do jardineiro, as plantas são seres indefensos. Ele cavou um pequeno poço, rasga a envoltura, joga a um lado o plástico sujo de barro, afunda o cilindro de terra no qual estão as raízes nessa cavidade que sinto morna e úmida; com o canto das mãos empurra a terra para esse centro criado pelo corpo da planta. Agora ela é mais uma, indiferenciada das outras.
O ventou aumenta sua força. O jardineiro se apressa. Os pedaços de plástico da envoltura começam a se dispersar, executam pequenos círculos, voam. As mudas já plantadas resistem ao ar em movimento. Os caules vibram agitando as folhas tenras.
Percebo que os meus olhos buscam aquela muda que criou uma margem na minha atenção. Como disse, ela não se diferencia das outras, visto todas pertencerem à mesma espécie. A multidão vegetal treme. Apesar da distância e do obstàculo de vidro me parece ouvir o farfalhar das folhas. A massa se sacode desajeitadamente para se opor ao vento, uma, porém, age de forma diversa, individual, poderíamos dizer.
Ses movimentos não se diferenciam dos das outras, mas há algo neles que os tornam únicos. Enquanto o comportamento da massa é de resistência, ela se abandona docilmente à corrente de ar, ganha força e graça nesta expressão de vontade. Talvez sua inteligência vegetal saiba que resistindo corre perigo de morte. O frágil caule se curva à direita e esquerda, à frente e atrás. As folhas arroxeadas dão um toque de vida melancólica à tarde cinzenta. A lentidão dos seus movimentos sugere um peso ou densidade física que não correspondem ao volume do corpo. Ao mesmo tempo é como se estivesse em outro ambiente, onde o ar fosse ameno, sem a violência desta tarde de verão no jardim solitário, varrido por vagas mornas que empapam a paisagem. Ao contato com a água, a terra quente exala seu cheiro. Brilham as folhas, novas, renascidas. E a plantinha gira, se inclina, balança, se encolhe aglomerando a cabeleira de folhas, se expande esticando os frágeis galhinhos, parece saltar cada vez que seu corpo esguio se projeta do fundo áspero da parede de concreto em direção desta janela. Rodopia uma última vez, e depois de fazer uma reverência em minha direção, fica imóvel, no prumo, hierática.
O temporal passou. o crepúsculo esfuma as luzes do jardim. Fecho a cortina e apago as lâmpadas, é hora de ir para casa.