BRUMAS

(A luz sépia, fixa até o fim do espetáculo, deve lembrar uma fotografia antiga, esvaída. No palco vazio - representa-se uma lembrança na qual o ambiente não cumpre qualquer função -, duas cadeiras de madeira, estofadas. As protagonistas - idades indefinidas entre quarenta e cinco e sessenta anos - estão sentadas de frente, em duas linhas ligeiramente diagonais em relação ao público. O espaço em torno delas deverá ser palpável: rotunda sépia, luz densa como um corpo. Vestem roupas que já na década de 1940 eram consideradas antigas. Cores dentro da tonalidade geral: amarelo escuro, ocre, sépia, terra sombra, de modo a não se diferenciar muito do fundo nem da atmosfera.

EULÓGIA, de lenço na cabeça, tricota, EULÁLIA, de xale, borda. Vozes "opacas". Ao falar/ouvir não se olham; encarando sempre a platéia, suspendem todo movimento. Seus afazeres se revelam somente nas pausas. Nenhuma música de fundo, apenas o som do ar - tempo - do lado de fora.

Pausa longa. Ambas estão concentradas nos seus afazeres.)

EULÓGIA - Lês poesia demais.

(Pausa breve)

EULÁLIA - Tu pensas em demasia...

EULÓGIA - É verdade..., parecemos duas figuras pintadas.

EULÁLIA - O rádio-teatro nos é mais apropriado.

(Pausa breve)

EULÓGIA - Sempre a máscara a ocultar... o quê?

EULÁLIA - Sequer sabemos o que somos para pretender ocultá-lo.

EULÓGIA - Mascara-se por hábito.

EULÁLIA - Não é bom mostrar-se o que se é.

EULÓGIA - E o quê somos?

EULÁLIA - Como sabê-lo? (Pausa longa. Nenhum movimento) Às vezes creio que estou vivendo um sonho no qual não sou meu verdadeiro eu, e sinto que a névoa que me separa da realidade..., isso que por hábito chamamos de realidade, irá rasgar e então uma luz diáfana ocupará todo o universo, e sem me ver sei que estou ali e sou meu verdadeiro eu, sem, contudo, saber ainda como serei ou como sou na verdadeira vida, que assim chamo eu esse meu sonho ou miragem, ou como quiserem chamar essa ilusão.

EULÓGIA - Eu, por mim, apenas se consigo me encontrar na névoa. Digo, sou parte dessa bruma que a todos nos envolve. A realidade, como a chamamos para facilitar i viver. Não enxergo luz alguma além da névoa. A minha voz parece-me uma brisa sem destino e as palavras o rumor vago dessa brisa que me anestesia e me permite sobreviver dentro desse sonho teu, do qual não sei se me apetece despertar.

(Pausa breve)

EULÁLIA - Uma tarde... há tanto tempo que não estou certa tenha sido nesta vida... Chovia..., era crepúsculo e outono..., confundiam-se no ar folhais e pardais. Eu esperava um trem ou apenas chegara à estação em meu deambular alheado..., aqueles passeios que fazia com freqüência tentando atravessar a névoa...

EULÓGIA - Sim, temíamos que tua razão se perdesse no caminho...

EULÁLIA - Que desconheciam...

EULÓGIA - Nem tanto, alguém te espreitava à distância. Temia-se que sem atinar com o caminho de volta a casa, te extraviasses.

(Pausa longa. Nenhum movimento)

EULÁLIA - Alheada, deixava-me estar... Era outono e crepúsculo e chovia... Uma rajada de vento gelado obrigou-me a procurar abrigo na sala de espera. À luz mortiça das fracas lâmpadas, a pele das pessoas tinha a cor amarela da cera, do pergaminho, das velhas fotografias... Na plataforma o entardecer era de cobre velho e a chuva papel de celofane a crepitar no vento... Agora que o conto, não estou certa de ter estado lá, parece-me tê-lo lido algures..

EULÓGIA - Sempre estás a ler, como certas heroínas de romances.

EULÁLIA - De fato, é como se mo tivessem contado, de algum modo... Já te disse que Estocolmo é o Paraíso envolto em celofane?

EULÓGIA - Sonhas, nunca estiveste lá.

(Pausa longa. Nenhum movimento)

EULÁLIA - Sabes?, ao recordá-lo, o quadro ganha um sentido que me escapou então... Não saberia dizer que sentido é este, porém... Agora, como naquele instante, tenho a sensação de já ter vivido este momento... Posso imaginar que alguém que estivesse na plataforma poderia ter visto o interior da sala com uma atmosfera dourada e não amarela como eu a via. Esse alguém, ao recordar aquela tarde, poderá nos ver como uma estampa antiga... Era escuras as vestes das poucas pessoas que ali se encontravam espalhadas pelos bancos encostados às paredes... Silenciosas... Sim, aquele observador veria a cena como se um sol esmaecido, cansado, lhe emprestasse luz e um calor fraco, doentio, e no entanto reconfortante se comparado com a plataforma na intempérie. Parece-me que um murmúrio indefinido no interior da sala e o rumor de passos e de vozes no exterior acompanham a cena, sem que tenha certeza de que tal coisa acontecesse então. Efeito teatral no quadro, se quiseres, no entanto, sem ele, creio que a recordação não está completa.

EULÓGIA - Agora é comovente...

(Pausa breve)

EULÁLIA - Sim..., havia algo de nórdico no ar...

(Pausa longa. Nenhum movimento. A iluminação diminui lentamente dissolvendo a cena.)