Inaudito

Parafraseio o arbitrário daquilo que penso ser, e me vejo, eu que tanto me pensei ser sofisticado (acho tanta graça nessa palavra) sou do interior e tenho de mim mais do que qualquer outra coisa essa qualidade que julgo belíssima. Me parto ao meio e me mostro ao avesso porque sou interior e o interior é o mais belo de mim.

Sou o ouvido afiado a um grilo cricrilando no escuro frio do mato recém-brotado, o menino que escova os dentes na manhã de luz ainda nem surgida sou eu, a escovação tépida, ignorante, da caneca de água regrada, tirada da cisterna no chão, ou, do copo bojudo de alumínio e surrado que é o molhar da pasta, o enxaguar da boca e o lavar da escova.

Quando criança brinquei bola descalço e seminu, brinquei também de boneca e boneco e me dizia entendido de saber costurar, filho e neto de costureiras que sou. Lembro com uma ternura e uma saudade um tanto dorida que meu avô paterno - que Deus o tenha! – era detentor de uma máquina de datilografar, quão belas eram aquelas tardes em que depois do almoço me dava ao luxo de ser escritor. O que às vezes desandava tudo era quando inventava de malinar naquele tubinho branco e vermelho de bico comprido, tão intrigante, que era o de óleo de máquina, aí já viu né?

Passava horas, sonhador que sempre fui, a desenhar e escrever no ar e lá ia eu volvendo 360 graus a rabiscar e apagar, tão absorto, até que uma voz adulta me podasse a criatividade.

Tímido sempre fui e também sempre propenso ao platônico do amor, assim amei diversas vezes.

Meu pai, herói-algoz-herói como a maioria e também por motivos muito nossos, ele foi e é o meu grande incentivador, o meu grande amor, em um silêncio machista, e sem dúvida meu grande exemplo.

Mainha, meu doce novembro, libriana - uma balança em des-equilíbrio assim como eu – embora eu seja capricorniano, dela herdei ainda uma sentimentalidade tão pura que a poucos ouso mostrar. Tão parecidos somos e por isso nos amamos mais que a qualquer outra pessoa, um amor que salta além de nós aos olhos alheios, embora dissimulemos, talvez para não despertar o ciúme da minha irmã e do meu irmão.

Sou o caçula e vejo nisso privilégios e defeitos, um moço que desde a infância recorre aos benefícios da psicologia, e nesse enleio fiz de profissionais e futuros psicólogos grandes amigos e grande admiradores. Ainda recentemente perdi a freqüência das analises e aventurei me guiar sozinho, desconfiei de ter me habituado à necessidade do estímulo profissional para dar as respostas que a vida me exige peristalticamente.

Sei hoje, mais que nunca, que me perco no meu sistema de artérias, talvez porque mergulhe insistentemente no macio aritmado do meu coração, ou, numa representação mais racional do gerador dessa consciência, posso dizer que me perco nos estreitos corredores do labirinto que o cérebro figurativamente representa, meu pai incontáveis vezes já me disse “Você se pensa demais, não acha não?” .

O que sei de mim é o que fui, e a mínima definição que tenho de mim já já virará passado é inevitável.

Corri muito e esse hábito não perdi, quem me ver vez ou outra correndo por aí não se assuste, não evito correr, me basta o mínimo motivo e como vivo atrasando, lá vou eu.

Estagnei muito também porque adorava e adoro observar o movimento da vida acontecendo sem que eu precise dar o primeiro empurrão no balanço, aquele de pneu, amarrado no galho da mangueira do terreiro de Pai Estefânio. A vida simplesmente acontece em mim e eu nela me faço acontecer, me quero acontecer.

Quem sou? Insubstância, aglomerado de bactérias, fruto da citologia...Aporia. Maldito ou bendito? Para mim sou inaudito.