Mais um Dia para Solitaire

Hoje ela acordou bem cedo, um despertar macio.

Realizou - bem lento - seu diário ritual.

Um espreguiçar felino e completo.

Na imensa cama povoada de travesseiros.

Alongou os membros e sorriu para o teto.

As estrelas adesivas ainda estão lá.

Ela mesma as colou, aos quinze anos.

Num tempo em que ainda se podia sonhar.

Levantou tranquila e se dirigu à sala de estar.

Mas antes passou pelo quarto dos meninos.

Sempre faz isso. Gosta de vê-los dormindo.

E pede baixinho :

- Por favor, Deus, lhes perceba. Lhes conceda mais um dia.

Depois alcançou a janela, sentiu o vento.

Respirou fundo o aroma de maresia. E disse bom dia.

Sempre fez isso. E sempre lhe pareceu ouvir da paisagem

complascente : - Bom dia, minha menina.

Menina, menina... já quase chegando aos trinta...

Mas ainda se encanta com o nascer da manhã, que em sua

luminosidade mansa faz do mar uma tela impressionista.

Hoje ela brinca de Monet, com seus infinitos tons de azuis.

E algumas pinceladas esverdeadas, a confundir-se com a branca espuma das ondas, ainda delicadas. Lírios d´água ?

Sempre lhe agradou observar o mar em sua suntuosa preguiça matinal.

Não lhe vê somente as superfícies. Sempre foi de profundezas.

O mar sabe disso. E guarda - cúmplice - seu imenso quintal.

Seus jardins quietos, coloridos em mistério. Seu imerso Giverny.

A luz se espalha, derramando horizontes no seu mundo.

E esse romper das trevas lhe ensinou a sentir paz.

No silêncio desses instantes recompõe sua energia.

Pois precisa. Precisa muito viver mais um dia.

Ouve um canto alegre, travesso. Quem diria !

Ainda existem passarinhos no Leblon !

E sorri, encantada. Parece mesmo uma menina.

Mas sabe que cresceu. Cedo demais. Porque sofreu.

Agora é uma mulher. É forte. Corajosa. Bonita.

Atrai o olhar dos homens, mas escolheu viver só.

Poucos conseguiram se aproximar. Mas mesmo estes

mal lhe souberam o nome, ou quem é, ou o que faz.

Ela os confunde, os afasta. E se devolve à solidão.

Acostumou-se às despedidas, desde cedo.

Mas às vezes lhe dói o peito. É preciso libertar

a quem se ama.

Mesmo que seja preciso sangrar-lhe a alma.

"A dor da minha ausência será passageira, pensa. Simples de superar.

Minha dor sim,não tem cura. E quando naufragar, irei sozinha.

Não levarei um amor para o fundo do mar, no derradeiro mergulho.

Mas antes preciso cumprir minha missão. É difícil. Mas consigo.

Tenho mais um dia, um vislumbre de destino. E tenho duas mãos. "

Quando os raios de Sol finalmente a envolvem, ela suspira.

Acabou-se o divagar. Inicia o movimento.

É hora de sair, vestir serena sua sina.

Ganhou outra vida, ela sabe e lembra.

E um trabalho que nunca termina.

Precisa cuidar de seus irmãos.

Claudia Gadini

29.12.05