Em Círculos
Precisei arrumar as malas e comprar passagem pra China pra perceber que não precisava ir tão longe para ver a grande muralha. Precisei arrumar as malas e ir pro outro lado do mundo pra perceber que não precisava arrumar as malas pra chegar no outro lado do mundo. Foi preciso um quarto de hotel, uma caminhada a sós e uma briga com um bêbado pra perceber o que é a solidão. Pra sentir em meu corpo a neve em pleno verão.
Vaguei por cidades amigas e lindas. Costurei na vestimenta de uma gueixa, os bordados das ruas sem saída e alimentei nos raios do sol nascente, as planicies e planaltos árduos com solidão.
Falar de amor? Escrever sobre a saudade? Propor devaneios nostálgicos? Recitar poemas aos prantos? Beber um copo d'água e chorar? Fechar as mãos sem rancor? Acetilsalicílico pro vírus do sentimento. E o remédio? São as frases curtas, a escrita fragmentada, as orações subordinadas. É o que permite ler e é o que me permite ser lido mesmo que me torne cego.
Precisei querer ser alguém que não era e não era pra ser. Precisei pedir esmola pra mendigo, beijar répteis à contragosto, sentir o doce antes do amargo, gritar em filmes mudos, acertar uma flecha no peito da amada. Precisei ser alguém que remava contra a maré, me ver de longe e pequeno, um idiota, estúpido; ser alguém que perseverava pra perceber que não percebia nada e que nenhuma medida tomada por mim, nenhum vulcão seria capaz de aquecer a neve que predominava em minha alma evasiva e rigorosa.