Banho de chuva
Da janela do meu quarto olho o céu nublado, cinzento... Olho, lembro e penso: para mim, felicidade tem cheiro e tem gosto.
É de terra! E molhada da chuva! Mas não é qualquer uma. É quase um pó muito fino. O aroma do pó misturado à gotículas da mais pura água da chuva, é inesquecível...Vira lama cheirosa!
Nas tardes de chuva no verão de minha infância, toda minha casa, que era de madeira, cheirava vermelho.
O calor nos convidava a tomar banho de chuva... e banho na chuva incluia a terra, com água da chuva, barro! Assim, no meio da água da chuva, tinha a lama macia e fina nas mãos. Escorregando entre dedos, manchando as unhas e marcando o tecido branco das roupas para sempre, não importando o sabão em barra ou em pó a ser usado depois..
Pisar na terra num dia de chuva, era uma aventura. Algo urgente,
primitivo acontecia... Levava o vermelho da terra ao rosto, num estranho ritual, que iniciava justamente nos pés encardidos de barro, subia canelas, joelhos, braços. Numa irresistível atração, continuava a subida e decorava as faces, a pele ficava também vermelha!
Lama virava carinho. Lama virava risada! Virava projéteis a serem arremessados uns nos outros participantes do banho! Virava bolinhos de lama, quentes de serem manipulados. Bolinhos que preenchiam de barro vermelho as unhas, quase sempre decorados com pedrinhas, folhas e flores da época ( quem não tinha vontade de comer os docinhos de barro ou não induziu alguém à provar?).
Bolinho de lama virava motivo para cantar parabéns, e celebrar a simples alegria de estar de bem com a vida!..
A chuva molhava a terra, molhava as crianças, que, como eu, terminava com fatias de bolinhos de lama vermelha e pegajosa, jogadas nas roupas, no vestido pelos irmãos e amigos.
Cabelo duro de lama vermelha, pele vermelha de lama macia na face risonha, numa guerrinha sem feridos, com ataques de intensas risadas!
Quando a chuva acabava, a mangueira iniciava o trabalho de limpeza. Deixava uma trilha de barro pelo pátio inclinado, bizarro córrego escarlate escorrendo pela laje, que revelava as crianças que éramos, antes do banho quente e definitivo no chuveiro!
Hoje, tantos anos depois, em certas noites, busco esta chuva, a chuva com cheiro de terra vermelha.
Ela teima em voltar nos meus sonhos!
Relaxo e pego de volta, agradecida, com as duas mãos, as sensações da infância como um presente colorido, que o tempo limitado empresta, por uma noite!