Arrebentando-me

Amanheci munido de uma calma incomum, acordei leve, como se as mazelas e infortúnios da vida tivessem sido expurgados de mim. Meu corpo regozijava-se com o sopro gelado que a chuva lá fora emitia. Era como se todos os meus poros e pêlos brigassem uns com os outros para que, enfim, eu descobrisse qual deles concebia-me maior deleite ao tocar o ar frio da manhã. Os meus olhos também foram fraternos, me cediam uma sinfonia desvairada de gotas. Cada pingo que surgia na janela era uma nova nota, um outro acorde que, escorrendo vidro abaixo, mudava de tom. A melodia havia se fixado em minha mente, era um diálogo que compunha de fundo a tímida presença de violoncelos que, brincando, fingiam findar apenas para conceber espaço para o toque manhoso de um piano melancólico e confortante. Desesperadamente, as gotas iam sumindo, uma a uma, mas não sem antes proporcionar um espetáculo fausto de toques cálidos e marcantes. Os pingos caíam fortes, em ímpetos explosivos que bombardeavam minha janela e meu espírito. Podia escutar a altivez dos violinos que, presunçosos, iludiam-me na tentativa de ofuscar os outros instrumentos. Era como se toda a sinfonia composta até o momento servisse apenas de desculpas para oferecer-me ínfimos instantes de efervescência e vigor, e que, a polidez de antes, que em surdina aprontava meus ouvidos, se desmantelasse em um palco vibrante e desesperado de delírio. Como se eu, eu também me arrebentasse, estourasse o peito, deixando-me para trás para ser, simplesmente, música.

Dionísio niilista
Enviado por Dionísio niilista em 28/01/2008
Reeditado em 26/06/2008
Código do texto: T836167