Relato de um fugitivo
Fugi.
Como o diabo foge da cruz. Ou como o homem foge do diabo.
Me afastei, apaguei o contato, excluí as redes.
Tentei guardar um pouco da minha sanidade, me preservando de fitar os olhos fundos, o rosto meigo, e o sorriso belo de dentes minúsculos e separados.
Julguei ter sucesso no curto prazo. Venci os primeiros dias, as primeiras semanas… E como, no dia seguinte, a ressaca se esvai sem que se perceba, assim não notei quando saíste de mim.
Em teu lugar, enfiei tudo e convidei a todos. Busquei algo ou alguém que preenchesse completamente o espaço que conteve meus sonhos amorosos de uma quinzena. E assim foi-se um mês, um trimestre…
Veio o ano novo. O carnaval. A quaresma. Penitências no dia-a-dia, misturadas com o andar pendante da vida. Sabe, eu sempre achei que havia algo heróico em buscar o sofrimento. A mortificação. O costume com as lágrimas e dores. Algo quase sobrehumano. Mas há uma diferença gritante de quando a dor é buscada para quando é imposta.
Para mim, meu carrasco foi o destino. Numa quente tarde de uma quarta-feira. No fundo de uma sala escura, em meio ao barulho de jovens revoltos e inquietos, uma figura com uma aparência ensurdecedora, como uma duplicata, apresentava os mesmos cabelos negros, os olhos fundos, o sorriso belo com dentes separados. Me veio o arrepio e a gagueira. E foi-se a paz do esquecimento. Lembranças em enxurrada, me afogando, me fazendo nadar de braçadas largas, levando meu coração a cento e sessenta e nove batimentos por minuto… Não por causa da inesperada pessoa, mas pelas lembranças daquela que fora evocada; que sempre esteve em mim, latente.
Fugi novamente. E agora aguardo a próxima oportunidade em que serei lembrado de que te perdi.